
Lá vêm eles…
Já é possível identificar, ao virar a esquina e vindo nesta direção, Dionísio (ou Baco, na mitologia romana) o deus da fartura, dos festejos, do teatro e do vinho. Ele vem abraçado com uma criatura pitoresca, o Rei Momo brasileiro — burlesco, rechonchudo, sarcástico, extravagante, escandaloso e desregrado.
Nota-se, pelo andejo de Dionísio, que algo mudou: a vibração no balançar do corpo, o pisar e as expressões não carregam mais o mitológico. Parece que no nosso século alguns mitos sofreram mudanças drásticas: como se os rituais tivessem sidos diluídos e os deuses mitológicos exauridos. Penso que Dionísio foi abduzido da Grécia Clássica, passou por uma espécie de upgrade genuinamente brasileiro e foi trazido para cá para servir de ajudante de ordens do Rei Momo.
Na verdade, Momus (Momo, masculino) — personificação do sarcasmo — era uma semideusa grega na Antiguidade Clássica a qual representava o delírio, o ridículo, a fofoca, o desprezo, a censura e a reclamação. Bagunçou tanto o coreto no Olimpo (morada dos deuses) que foi expulsa. No Brasil, Momus passou a ser Momo — a deusa foi aceita na forma masculina (o patriarcado é quem manda aqui) — e agora é rei.
A figura é tão extravagante e irreverente que consegue colocar no seio democrático um reinado. Reinado este capaz de dopar a população. Sim, ele traz a ilusão, e anseia aliviar a carga da vida — ao balançar seu guizo hipnotiza a consciência e alivia o peso da existência; e o mais importante, para muitos, faz esquecer os boletos.
Um reinado se instala.
Mas lembro, aqui no Brasil, vice é complemento. Dionísio é isso, complemento (vice-rei? Sei lá.), não é lembrado: é o “tanto faz como tanto fez”. O rei aqui é Momo, genuinamente brasileiro, carrega em sua mão um bastão no qual símbolo da insanidade, e traz consigo a lassidão, a devassa.
O Rei Momo brasileiro carrega consigo, ainda, a chave da cidade — a qual recebeu do prefeito. A partir de então, até Quarta-Feira de Cinzas, é ele quem comanda a cidade. Dionísio está ao seu lado, talvez para fazer algumas selfs.
A importância dos mitos.
Para muitos o carnaval (o reinado do Rei Momo) é uma mistura de festança com a libertação das amarras sociais que vale a pena ser apreciada, pois ela traz o frevo, a sacanagem, a libertinagem, a promiscuidade, o paganismo. Contudo, na parte mais oculta da consciência humana (bem atrás da coxia do teatro da vida, bem lá no fundo, na psique), o carnaval é um dos muitos mitos que simboliza o alívio da carga da existência.
A mitologia proporciona em nós o entendimento do mundo, das nossas relações com este mundo esquisito, absurdo (o ‘absurdismo’ da existência, como nos mostrou Albert Camus em suas obras). Sem a mitologia tudo ficaria mais difícil e mais perigoso.
Atualmente é comum dizermos que os mitos são ilusões porque a filosofia e a ciência desmontaram o fantástico, o belo (o sobrenatural). Elas trouxeram para nós, em pratos limpos, ou quase limpos, o lado cinzento da vida, as incertezas das coisas.
Na antiguidade os mitos eram considerados verdadeiros, porque era a única forma que eles tinham de entender as coisas do mundo, a humanidade da época pautava suas vidas à luz do sagrado (do sobrenatural). Era no sagrado que o homem encontrava conforto; fora disso o caos se estabeleceria, o profano, com todas as suas dores, assumiria o posto.
Alguns dizem que o ser humano não suportaria a vida pura, sem as ilusões — “a vida assim como Ela é”, lembrando os contos de Nelson Rodrigues. Os mitos são importantes. “A primeira função da mitologia viva”, dizia Campbell, “é conciliar a consciência com as precondições da sua própria existência”. Campbell ainda acrescenta que “o mito deve fazer o indivíduo atravessar as etapas da vida, do nascimento à maturidade, depois à senilidade e à morte”.
Acredito que os mitos nos ajudam a atravessar o caminho das pedras com menos sofrimentos. Lembro, ainda, o que disseram os filósofos Schopenhauer (“A vida é algo que não deveria ter sido”) e Nietzche (“Quem deve enfrentar monstros deve permanecer atento para não se tornar também um monstro. Se olhares demasiado tempo dentro de um abismo, o abismo acabará por olhar dentro de ti”). Reafirmo o alerta: é perigoso tentar adentrar na coisa horrenda da existência sem a proteção dos mitos.
Aceito, mas com ressalvas.
Por estas razões, e mais outras coisas, aceito os mitos, melhor ainda, aceito o carnaval e toda sua simbologia (já escrevi sobre isto AQUI).
No entanto, se o mito vem para nos transformar em seres mais saudáveis, sem as excessivas neuroses, por que existem os “IMBECIBEIS” (imbecis mal-educado que usam os paredões de som automotivo)?
Seres como estes parecem sofrer de neurose mais do que outros, já que esbravejam suas agonias nas supostas músicas em alto volume. Acho que este tipo de gente deve ter, em outras encarnações, visitado o inferno de Dante, pois conhecem muito bem as estratégias para torturar almas.
Os mitos estão aí para ser o cano de escape das nossas neuroses, se não houver um senso ritualístico é possível piorar o que deveria ser extirpado. Os imbecibeis não ritualizam, eles vociferam. Expectoram seus sofrimentos não para os mitos (os verdadeiros aliviadores dos sofrimentos) mas para os lados, onde o outro está.
No tocante ao excessivo volume, pesquisas revelam que 51 e 65 decibéis (dB) são limites aceitáveis para o cérebro humano. Acima disso nosso cérebro fica exposto a futuros problemas cognitivos. Nesta cidade há leis (Resolução do CONTRAN n° 958) para combater os imbecibeis, vamos usá-la para nossa saúde mental.