Pronto! O carnaval, por enquanto, acabou. Agora é continuar a vida normal — embora eu não tenha saído dela, seja lá a comemoração que houver. Nada me faz esquecer os boletos por completo — aqui e acolá tenho alguns lapsos de esquecimento, e logo volto a lembrar de que atrasei um deles (ou alguns deles). A minha vida anormal é sem boletos (o que ainda não aconteceu).

Mas voltando ao carnaval. Ultimamente não acompanho desfiles de blocos na TV, e nem participo de movimentos carnavalescos (de nem um tipo). Algumas pessoas, do meu ciclo de amizade, falam que é a força da idade.

Quando era mais jovem, afoito, como dizia minha avó, costumava assistir aos desfiles dos blocos de sambas, assim como as irreverências de certos foliões. Não eram os blocos de samba do Rio, nem de São Paulo, mas a do bairro de uma cidadezinha que nem aparecia no Jornal Nacional. 

Nestes blocos (ou grupos) de foliões via-se de tudo:

> crianças a brincar trajadas de urso batendo em latas, entoando versos antigos adaptados ao local — dizem que a fantasia de urso veio dos povos europeus, trazidos para cá por imigrantes, entre eles os ciganos (ainda que estes não sejam de uma só etnia);

> bloco dos melados de lama de rua, não confundir com os foliões de Macau e da praia da Redinha. Em Macau, no Rio Grande do Norte (RN), o povo se melava de melaço de cana em tonéis (são conhecidos como o bloco do Mela-Mela), e, ainda, na praia da Redinha, também no RN, Zona Norte de Natal, tinha o folião coberto de lama do manguezal, “Os Cão”;

> existia também o bloco do “Embriagados para Sempre”;

> gente com fantasias de rastafári, ciganos etc.

Era uma mesclagem de fantasias que muitos dos foliões não sabiam do que estava por trás daquelas simbologias. A penas colocavam seus trajes, pintavam-se, iam para a rua e brincavam.

As fantasias fazem parte do imaginário popular de muitas festas carnavalescas. No entanto, elas são ignoradas por aquilo que elas representam. Algumas fantasias, e seus adereços (assim como suas simbologias), são alvo de discussões. Ultimamente, algumas delas já perderam (ou vão perder) espaços no carnaval por carregar certos estereótipos (social, cultural, étnico e de gênero). Por exemplo:

> foliões com trajes de indígenas. Questão que está em debate atualmente. Em 2018 foi lançado uma cartilha sobre o uso da fantasia indígena, a ativista Katú Mirin encabeçou o manifesto. Em 2019, a indígena Célia Xakriabá publicou em seu instagram a seguinte mensagem:

“A questão indígena no carnaval precisa ser politizada, já que não é um ambiente muito frequentado pelos corpos indígena. Nós Indígenas precisamos ser tratados mais do que penas, nos carnavais, pois somos pilar importante e o tronco originario na cultura brasileira.
Já parou pra pensar o que ocorre com outros corpos da diversidade no Brasil? é que a presença dessa pluralidade encomoda, enquanto nós é pior porque grande parte da população nos dão como inesistente, como povos que já morreram que não existe mais, então nosso desafio passa por fazer visível.Porque a partir do momento que estamos encomodando, significa que estão nos vendo. As duas maneiras violenta que a questão indígena é reportada, ou nos dão como inesistente, apenas como povo do passado, ou com a pergunta questionadora se somos de verdade. Acorda Brasil os povos originários estão sendo executados da forma mais violenta, estão queimando nossos corpos. Convidamos vocês a tecer essa rede solidaria, pois nem a nossa luta e nem nossa identidade não é fantasia, é real. #identidade”
. (Célia Xakriabá).

Atualmente não se ver grupos de foliões fantasiados de indígena. Isto já vinha caindo em desuso, e agora com várias manifestações em contrário a coisa parece encerrar de uma vez por toda.

> Assim também parece cair em desuso a fantasia da “Nega Maluca”. Preconceito racial (ainda que inconsciente), no carnaval das antigas, não faltou. Algumas letras das marchinhas carnavalescas traziam a descriminação:

“O teu cabelo não nega, mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata
Mulata, eu quero o teu amor”

(Trecho da composição de João e Raul Valença, em 1929; cantada por Lamartine Babo e Irmãos Valença).

Embora há quem diga que a composição enaltecia as mulatas. Não era uma forma de preconceito, considerando a época de sua produção.

Outro ponto que está em discussão é sobre homem em traje feminino.

> Por que homens gostam tanto de se vestir como mulher em época de carnaval? Será que deve ser a vontade de se sentir feminino? Ou será que ele quer mostrar que é “machão” ao utilizar este artifício para satirizar o lado feminino?

Silva Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, em entrevista à Agência Brasil, explica que “esse atravessamento de gênero, justamente de homens fortes vestidos com roupas de mulher, com salto alto, se tornou uma marca do carnaval, que acentua, na cultura brasileira, esse momento de transgredir com uma série de coisas”.

O que se tem de informação é que se fantasiar de mulher em festas carnavalescas vem de muito tempo. Há registro no século 18, na Rússia, segundo informa o antropólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Roberto DaMatta, que também foi entrevistado pela Agência Brasil.

Contudo, há quem não concorde com homem fantasiado de mulher, e há os que ainda defendem tal postura. Os que são a favor falam que fantasiar-se de mulher não causa nenhum problema social, até porque, o vestir-se, assim como a forma de se comportar em certas sociedades, sofrem variações, e não há mal nisso. Já os contrários afirmam que é urgente o combate a forma “romantizada” de expressões carregadas de misoginia, machismo e racismo dentro dos festejos carnavalescos.

Bem…seja lá como for, o fato é que a sociedade é dinâmica em toda sua forma. A despeito de ela se alimentar de fatos históricos (norteador do espaço-tempo, por onde a humanidade compreende a própria realidade) não a condiciona a tornar-se estática neste espaço-tempo. Tudo passa por transformação, e o carnaval não escapa desta sina, ainda que o carnaval seja considerado o libertador do espírito, onde brincar e subverter têm poderes transformadores.