
Há caso, e em certas circunstâncias, em que conversar com certas pessoas, via comunicação digital, ou mesmo pessoalmente, não orna bem com a qualidade de vida. Principalmente se esta pessoa tem pavio curto. Essa gente, mal-educada, que não respeita espaços, com pouca compostura, que promove brigas, e até mortes, por motivos fúteis, parece se espalhar por toda parte. Há quem diga que tudo isto tenha sido por conta da internet. Na verdade, a internet não foi a causa, isto já existia desde tempos remotos.
A humanidade carrega em suas costas algumas das muitas forças ancestrais e instintivas, as pulsões, nas ideias Freud. Para Freud elas estão assim classificadas: o ID, Ego e Superego. Nietzsche também já escreveu sobre estas forças (nas quais chama de impulsos), mas ele a classifica como sendo uma manifestação da vontade de poder, algo como um afeto primitivo.
As pulsões, ou os impulsos, influenciam sobre nossas pequineses civilizatórias. Nos esforçamos para mantermos civilizados, ou seja, nos esforçamos para manter nossas pulsões sobe as rédeas das regras sociais. Alguns de nós não conseguem controlá-las por muito tempo, e quase sempre vêm à tona a essência animal.
Logo, pessoas que têm pavios curtos são quase sempre temperamentais, são conflituosas, que tentam resolver tudo com xingamentos e brigas. Quase sempre não conseguem controlar certas forças primitivas. A internet não é a responsável por transtornos como estes, ela está sendo o meio pelo qual facilita as profusões e descargas emocionais entre as pessoas.
É claro que, atualmente, passamos a identificar com mais frequência estes desarranjos emocionais. Antigamente, não muito tempo atrás, boa parte das pessoas de pavio curto, ou de pensamento e ação mesquinhos, estava em seu pequeno mundo, ali, na sua vizinhança, nas mesas de bares e botequins, ou mesmo dentro da sua casa. Daí então, com a chegada da comunicação digital, encontrou um espaço propício para espalhar seu escárnio, seu tormento, seu preconceito, racismo e discriminação.
Byung-Chul Han, filósofo, afirmou que a comunicação digital “torna uma descarga de afetos instantânea possível (…). Ela transporta mais afetos do que a comunicação analógica”. Ele ainda acrescenta que “a mídia digital nos afasta cada vez mais do outro”. Umberto Eco, escritor italiano, num evento ocorrido em junho de 2015, afirmou que “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”. Acho que ela deu voz a todos, mas os imbecis parecem ganhar a parada na disseminação das grosserias.
A coisa virou de ponta-cabeça, todos queriam dizer alguma coisa, parecia que algo cogitava transbordar, estavam sufocados. Encontraram espaço apropriado e se manifestaram. Assim declarou o sociólogo Manuel Castells: “as emoções coletivas são como a água: quando encontram um bloqueio em seu fluxo natural, abrem novas vias, frequentemente torrenciais, até inundar os exclusivos espaços da ordem estabelecida”. Alguns esbravejaram de maneira torpe sua ignorância civilizatória: das suas bocas saíram palavras de ódio, das suas mentes a imbecilidade alavancava a mais obscura natureza animal, os instintos agressivos; das suas mãos, a violência física. Aquele que antes era seu próximo, que pensava igual ou diferente, o tal “próximo” da Bíblia, agora é seu inimigo, e deverá ficar o mais longe possível, de preferência, ser exterminado.
A comunicação digital passou a ser um tipo de ambiente pelo qual as pessoas incivilizadas frequentam com intento de esbanjar as pulsões que as sufocam, justamente porque elas não conseguem controlá-las. Elas utilizam o espaço digital e criam a arena do vale tudo. O problema é que neste ambiente digital não estão somente os incivilizados, há nele os civilizados, aqueles que, embora com suas pulsões, são capazes de controlá-las de modo a viverem em um ambiente mais sociável.
Este excesso de violência ficou mais visível e mais grave de alguns anos para cá, mais especificamente na política eleitoral. Com a escalada da extrema direita — Índia em 2014, Estados Unidos e Inglaterra em 2016, Alemanha em 2017 entre outros —, houve aumento da incivilidade nas pessoas. O que antes eram agressões digitais, passou para o campo da violência física. No Brasil, na política de 2016 até a eleição de 2022, parecia que uma avalanche de violência havia descido das mentes e entupido as vias da comunicação com o mundo civilizado.
O site Terra de Direitos traz o panorama da violência política e eleitoral brasileira. Os dados da segunda edição da pesquisa (no site você encontrará também a primeira edição, que vai de 2016 a 2020), são de setembro de 2020 a outubro de 2022: “foram registrados 163 assassinatos e atentados contra os agentes políticos, 151 ameaças, 94 agressões e 106 ofensas, além de casos de invasão e criminalização. Um número considerável de casos está concentrado em 2022, que antes mesmo do início do período eleitoral registrou mais casos do que o ano de 2021 inteiro”.
A despeito de tudo, precisamos da nossa educação humana, a civilidade, para controlar as pulsões e vivermos em sociedade. Aqui cabe colocar a parábola do porco-espinho, uma metáfora usada pelo filósofo Arthur Schopenhauer para se referir às dificuldades de convívio entre os seres humanos:
“Durante uma era glacial, quando o Globo terrestre esteve coberto por densas camadas de gelo, muitos animais não resistiram ao frio intenso e morreram indefesos, por não se adaptarem as condições do clima.
Foi então que uma grande manada de porcos-espinhos, numa tentativa de se proteger e sobreviver, começou a se unir, a juntar-se mais e mais. Assim cada um podia sentir o calor do corpo do outro. E todos juntos, bem unidos, aqueciam-se, enfrentando por mais tempo aquele inverno tenebroso. Porém, vida ingrata, os espinhos de cada um começaram a ferir os companheiros mais próximos, justamente aqueles que lhes forneciam mais calor, aquele calor vital que era questão de vida ou morte. E então, afastaram-se, feridos, magoados, sofridos. Dispersaram-se por não suportarem mais tempo os espinhos dos seus semelhantes, pois doía muito.
Mas, essa não foi a melhor solução: afastados, separados, logo começaram a morrer congelados. Os que não morreram, voltaram a se aproximar, pouco a pouco, com jeito, com precauções, de tal forma que, unidos, cada qual conservava uma certa distância do outro, mínima, mas suficiente para conviver sem ferir, para sobreviver sem magoar, sem causar danos recíprocos. Assim, aprendendo a amar, resistiram a longa era glacial. Sobreviveram”.
(Parerga und Paralipomena, obra publicada em 1851)