
Para ler a 1ªparte, é só clicar AQUI
Naquela altura do campeonato, quanto mais avançava o segundo tempo do jogo, mais acirrados ficavam os jogadores e os torcedores. No gramado, as faltas com entradas perigosas se acumulavam, os dois times somavam seis cartões amarelos e duas expulsões para ambos.
Nas arquibancadas torcedores aumentavam ainda mais as provocações. O Timão atacava repetidas vezes o time adversário até que, na grande área, provocou um pênalti meio que incerto. O juiz marcou o pênalti em favor do Timão. Os torcedores adversários gritavam:
— Juiz ladrão!!! juiz ladrão vá a @#*&%$#. Juiz ladrão foi comprado pelo timinho! Uu,u,u timinho vai @&*#@#¨!!! Olê olê, olê olê, olê olê nós vamos pegar você.
Após a cobrança do pênalti a confusão ficou insustentável, faltavam vinte minutos para o jogo acabar quando uma bomba de maior potência atinge um torcedor do Timão.
Zeca, já preocupando com o avanço das ofensas dos dois lados, olhou para Hudson que estava a assoprar na cornetinha, puxou-o para mais próximo de si, olhou para Ricardo que também estava com seu filho de oito anos.
— Vamos sair daqui, Ricardo. Parece que a coisa está esquentando. Estou preocupado com a segurança deles — apontou Zeca para as duas crianças.
— Vamos, vamos sim. Vamos sair por aqui, é caminho para o portão externo. Aqui está muito perigoso.
— É verdade. Eu só não gosto porque vamos perder o jogo, mas aqui já não dá para ficar.
Ao tentarem sair pela porta de emergência foram abordados por dois adolescentes que estavam com pedaços de madeiras nas mãos.
— Para onde os senhores vão? É melhor voltar. Por aqui vocês não podem sair.
Zeca colocou Hudson e o filho de Ricardo atrás dele. Ricardo tomou a frente de Zeca, olhando para os adolescentes disse:
— Saiam da frente garotos, a gente precisa levar nossos filhos para tomar um pouco de ar lá fora, eles não estão se sentindo bem.
Neste momento seis policiais iam passando para atender a uma ocorrência de briga entre torcedores; ao ver os adolescentes com pedaços de madeiras, abordo-os e os prendeu.
— Passagem liberada — disse Zeca.
Um dos guardas que os acompanhou até a porta externa aconselhou-os para que eles fossem logo para os ônibus, pois eles, os policiais, haviam detectado um grupo de trezentas pessoas fechando algumas vias. Os soldados disseram que cinco viaturas tinham sido deslocadas para os locais, mas eles eram insuficientes para ações como essas.
Em pouco minuto foi possível mobilizar os passageiros dos ônibus, e antes que o jogo acabasse os quatro ônibus estavam saindo do estacionamento. Os passageiros estavam tensos, no ônibus só havia três crianças, incluindo Hudson, que sopravam insistentemente as cornetinhas sobe os protestos dos pais. Não havia hino, nem gritos de Timão e muito menos gritos de vitória. Todos exigiam silêncio.
— Pare com isso, Hudson! Sente-se aí — disse Zeca com voz tensa e olhos esbugalhados para o lado de fora do ônibus.
— O senhor disse que era para tocar bem alto, — protestou Hudson, ao olhar para o pai que não estava olhando para ele com a cornetinha ainda na boca.
— Agora não, agora não. Silêncio! Painho vai comprar outra corneta para você quando a gente chegar em casa. Guarde um pouco essa aí.
Quando os quatro ônibus entraram na via principal foram cercados por dois caminhões Mercedes-Benz que fechavam a vi. Os motoristas dos ônibus, ao tentarem desviar do cerco, entraram na rua ao lado que já estava preparada para a ação de vandalismo. Ouviu-se o primeiro ataque.
— O que foi isso! — perguntou Zeca, assustado e olhando freneticamente para o lado de fora.
— Um dos nossos ônibus foi atacado com bombas e está em chamas! — gritou Ricardo, abraçado com o filho. — Meu Deus! Meu Deus! Por que trouxe meu filho para cá?!
— Abaixem-se e fiquem quietos — gritou o motorista, que acompanhava pelo retrovisor as ações dos bandidos no segundo ônibus atrás deles.
— Motorista, não tem como a gente sair daqui não? — perguntou Bruno, tremendo de medo.
— Não tem. A gente está em uma rua só com uma saída, e atrás de nós tem um caminhão fechando o local.
— Estamos cercados, é isso? Perguntou um dos torcedores que estava agachado atrás do banco do motorista, que também acompanhava o movimento pelo retrovisor do ônibus — eles vão atacar aqui, seremos o próximo. Vamos ter que sair, nem que seja a pé.
— Não. Não faça isso! — gritou o motorista — Se não estamos seguros aqui, muito pior é lá fora. Ouvi sons de tiro.
Uma turma de bandidos se aproximava do ônibus onde estava Zeca. Passaram ao lado do ônibus e se dirigiram para o quarto ônibus, onde estava Carlão. Arrombaram a porta e o arrastaram para fora, sobe a resistência dos torcedores do Timão, mas o grupo agressor estava em maior número. Os demais passageiros, amigos mais próximos de Carlão, foram agredidos violentamente. Ao longe ouviam-se as sirenes da polícia, vinha na direção do grupo. Os bandidos se avexaram em sair dali, mas antes jogaram coquetéis molotov dentro dos demais ônibus. Um desses coquetéis atingiu as pernas de Hudson e o cabelo de Zeca, e ainda respingou em Ricardo. Em grito, Hudson correu dentro do ônibus com a perna em chamas. Foi segurado por Ricardo. Zeca gritava e batia freneticamente com as mãos tentando apagar o fogo que queimava parte de seu cabelo e as sobrancelhas.
— Hudson, Hudson! Papai está aqui…estou aqui filho, cadê você? Não chore, filho, não chore! — gritava Zeca desesperadamente tendo que apagar as chamas do cabelo com um pedaço de pano rasgado da camisa do Timão, e, com os olhos fechados, passar o pano no rosto, pois as sobrancelhas também foram atingidas.
— Segurei ele, Zeca — disse Ricardo — ele está com as pernas queimada.
— Ai, ai… ai, pai, pai tá doendo muito! Me ajude, pai…me ajude.
Depois de retirar a camisa rasgada e molhá-la em água, Zeca passa no rosto e na cabeça para diminuir o calor deixado pelas chamas. Abre os olhos e vê o filho com parte da perna direita avermelhada e com formação de bolhas e resto de tecido pregado. Hudson gritava muito de dor e Ricardo o segurava com cuidado. Ao ver a cena, Zeca sentiu a profusão de culpa por ter trazido Hudson com ele. Por alguns segundos ele ficou sem ação, olhado para os gritos do filho, segurado por Ricardo e sem saber o que fazer.
— Zeca, você está me ouvindo? Peça aos policiais para pedir uma ambulância.
— Sim, sim…eu…vou — Zeca respondeu com muita dificuldade, como se algo bloqueasse a voz dele.
Zeca sai rapidamente do ônibus e solicita a polícia uma ambulância. Dez minutos depois a ambulância do Samu chega e faz os primeiros atendimentos. Pelo lado de fora era possível identificar vários ônibus queimados. O menos afetado pelos vândalos foi o ônibus onde estava Zeca. Alguns minutos depois chegaram mais ambulância para atender aos demais pacientes, havia muitos feridos — alguns estavam com boa parte do corpo queimado, com ossos expostos, bolhas pelo corpo, pele avermelhada, tecidos pregados no corpo, cabeça cortada, corpo perfurado com lasca de madeiras e pedaços de ferros. Carlão e Paulão estavam desmaiado e com vários cortes pelo corpo, sangrava muito. Os pacientes seguiram para o principal hospital da cidade.
Em uma das alas do hospital, específicas para atendimentos de queimaduras, está Hudson com seu pai, já passava das duas horas desde quanto eles haviam chegado aquele local, estava sendo atendido pelos médicos especialistas em queimaduras, um dos médicos chegou para Zeca e perguntou:
— O senhor e seu filho têm plano de saúde? Perguntou o médico.
— Não, doutor. Vai precisar de um plano?
— Não necessariamente. Mas o que podemos constatar é que ele, seu filho, irá necessitar de atendimento diário por uma enfermeira até que ele esteja recuperado. Seu filho sofreu alguns danos no tecido e atingiu algumas partes dos seus tendões. Por um certo tempo ele terá que fazer fisioterapia para recuperar aos poucos os movimentos da perna. Você pode fazer este atendimento via SUS, mas irá demorar ser atendido, e seu filho necessita que a ação seja imediata. Você também terá de comprar alguns medicamentos, passarei algumas receitas.
— Podemos ir embora, doutor? Eu não sou daqui, e minha esposa ainda não sabe do problema.
— Não. Por enquanto, você terá que acompanhar seu filho aqui. Ele não está em condições para ir hoje. A perna direita dele foi muito afetada pelas queimaduras e, neste momento, uma equipe de especialista está realizando algumas análise e exames nele. Quanto a você, sugiro que vá naquela ala ali do lado para que a enfermeira veja estes seus ferimentos no rosto e na cabeça. Creio que você sofreu queimadura no coro cabeludo, precisa limpar a área para que possamos ver isto.
— Nossa! Doutor, o que foi que eu fiz com meu filho? Não sei nem como começar a contar a minha esposa.
— Calma, senhor Azevedo. Seu filho irá se recuperar. Crianças conseguem recuperar muito mais rápido certos problemas como esse. Se você seguir nossas recomendações terá a certeza de que ele irá se recuperar completamente. Se muito ficar são algumas sequelas em forma de cicatrizes…
O médico falou todos os detalhes sobre aquele tipo de queimadura e como deveria ser acompanhando em casa ao longo de todo o tratamento. Zeca havia ligado o gravador de voz do celular para registrar as informações do médico, com receio de que pudesse esquecer de todas as informações: “Se fosse algo sobre jogo, ou sobre o Timão, saberia de todos os detalhes, até quem foi o primeiro atacante a receber cartão amarelo no jogo de cinco anos atrás, ou quem foi o primeiro a marcar o gol da vitória no ano dois mil; mas saberia que não conseguiria memorizar todas as informações do médico”, pensou.
O fato é que neste momento ele só ouvia a voz do médico, mas não o escutava. Sua mente voltou-se ao exato momento em que escultava Luzinete falar: “Você não acha que está exagerando?”, “Se você economizasse um pouco mais nestes gastos”. Tinha plena consciência que seu filho necessitaria de cuidados, e estes cuidados envolveriam dinheiro e paciência. Ser paciente era fácil, custaria hábito e força de vontade; ter dinheiro, já era mais difícil. Teria que pedir ajuda, ou ainda, teria que cessar todos os gastos com o Timão, e com isso perderia todas as vantagens para os próximos jogos. E para piorar tudo teria que suportar o incomodo de que Luzinete sempre esteve certo em seus protestos.
— O senhor entendeu, Azevedo?
— Sim, senhor. Entendi — disse de modo desconfiado, ante ao olhar incisivo do médico. — Senhor doutor, com licença, preciso ligar para minha esposa, ela ligou várias vezes e eu não atendi até que tivesse algo bom para dizer. A esta altura ela deve ter visto os noticiários.
— Pois não, Azevedo. Fique à vontade.
Com as mãos tremulas ligou para Luzinete. Nem bem o telefone tocou quando ela atende ao telefone nervosa e inquisitiva:
— Zeca, pelo amor de Deus, o que aconteceu?! Cadê Hudson? Ele está com você? Como ele está? Aconteceu algo com você? Fale…por favor, fale tudo.
— Calma amor, calma. Está tudo bem…está tudo bem…deixa eu explicar direitinho…
Cinco meses se passaram, Zeca e Luzinete investiram tudo que podiam para a recuperação de Hudson. Praticamente arcaram com todas as despesas, apertaram o bolso, compravam somente o indispensável. Os amigos mais próximos ajudaram com medicamentos. Seu Francisco aceitou que eles pudessem comprar tudo fiado e pagar sempre a metade do que foi comprado no mês, e que quando eles pudessem pagar iriam quitar a dívida em suaves prestações. A vizinha, Raquel, comprometeu-se com os custos das seções de fisioterapia para Hudson. Contudo, de onde mais Zeca esperava ajuda, foi exatamente dali que não veio nada, nem um telefonema para saber como estava ele e o filho.
— Tanto que contribui com o clube; tanto que fiz por eles — disse Zeca, com lágrimas nos olhos, ao conversar com Luzinete e ver o filho em cadeira de rodas. — Nunca atrasei um só dia. Tirava dinheiro de Seu Chiquinho para dar ao clube. Nenhum dirigente, técnico, jogador e nem torcedor, ligaram para mim. Deles, nem uma ligação recebi, nem nenhuma, nenhuma uma ligação. O que foi que eu fiz, minha Luzinete, o que foi que eu fiz da minha vida? Quão tolo fui… em achar que eram eles que me davam a felicidade, a alegria do fim de semana. Para eles o lucro é tudo: gastam milhões com marketing, pagam altos salários dos jogadores, fabricam os atletas no mais típico estilo de um produto, fabricam acessórios e intensificam as publicidades, alimentam a fetichização da marca nas vitórias; e eu os comprava…os comprava, Luzinete, os comprava. Agora eu sei, com atraso, mas sei: meu timão é a minha família. Meu clube nunca foi meu; e eu, de agora em diante, não serei do clube. Para mim, ele será o timinho. Escreva o que eu disse: para mim, ele será o timinho, o timinho, com t minúsculo.