
Era mais uma partida de futebol, Zeca Azevedo preparava-se para colocar a camisa do seu time, pendurava um apito no pescoço e amarrava a corneta vuvuzela no cós. No outro quarto, do filho, Luzinete Azevedo, ainda com a cara fechada da última discussão com Zeca, preparava a indumentária do filho de seis anos, Hudson Azevedo. Vestia nele a nova camisa com as mesmas cores do time do pai, em seguida colocou a cornetinha no bolso da bermuda do filho, amarrou uma tira na cabeça dele e colocou o boné personalizado com a marca do time que o pai torcia. No quarto do casal, Zeca amarrava uma fita na cabeça e colocava o boné personalizado. Pai e filho preparavam-se para o evento daquele dia. Hudson estava feliz. Não entendia nada do que era futebol, só sabia que nos sábados e domingos a tarde, nos dias de campeonatos ou de treinos do time preferido do pai, eles pulavam, gritavam e diziam nome feio.
Zeca Azevedo, cinquentão, com cara de sessenta, é um cidadão como qualquer outro, em certa medida cumpria com suas obrigações — era segurança patrimonial — e descumpria em outras, nos pagamentos das dívidas; aliás, cumpria mais o que não era obrigação familiar do que as obrigações familiares propriamente ditas. Nas economias de casa tentava manter o controle das contas, o que nunca conseguia. Evitava atrasar as contas fixas, ainda que a água e a luz, no espaço de um ano, eram cortadas duas vezes. A cada cinco meses pagava o valor mínimo de um dos três cartões que tinha.
Vivia na ponta do lápis, mas não cumpria as devidas obrigações de consumidor. Sempre ficava vestígio de dívida para o mês seguinte na mercearia de Seu Francisco, mesmos com as ameaças de Seu Chiquinho, como ele o chamava, em cortar as vendas pelo sistema “fiado, por confiança”. Contudo, uma coisa ele não atrasava, o compromisso com o seu time preferido. Ser sócio-torcedor demandava compromisso financeiro: pagamentos direto na conta de seu carnê digital, compras de adereços e assessórios nas lojas online do time, compras das senhas antecipadas para os jogos de campeonato, desconto de cinco por cento no ingresso e ônibus para sócio-torcedor em viagens para assistir aos jogos do time em outras cidades, gasto com merenda e bebidas em dias de eventos. Uma boa parte dos seus dois salários-mínimos estava preso a este compromisso. Para Zeca isto não era problema, sempre dizia que este era o seu divertimento para expulsar as mazelas da sua vida.
Luzinete Azevedo, com seus quarenta anos de idade, ainda que pareça mais jovem, sempre tratava de organizar as contas da família. Não usava a ponta do lápis para controlar as despesas de casa, mas economizava até onde podia — salvo algumas exceções, pois assumia até as contas do esposo para cobrir os gastos com cartões. Alguns gastos fixos da casa estavam automatizados para desconto em conta, as demais eram agendadas via aplicativo do celular; gastos extras eram pagos via pix, quando sobrava dinheiro. Luzinete não ficava com dinheiro em casa justamente para evitar que Zeca gastasse com as apostas esportivas online.
Os seus dois salários-mínimos garantiam a sobrevivência da família, e ela o usava com muita parcimônia. Ao fim do mês de trabalho — era gerente de caixa de um supermercado da cidade — a empresa solicitava a apresentação do balanço mensal do setor. Neste dia ela ficava ainda mais tensa. Tinha que dar de conta de todos os processos operacionais como: balanço semanal, monitoramento diário de fluxo de caixa, escala e banco de horas entre outras. Com raríssimas exceções tinha algo errado nas contas. Quando acontecia algo inusitado ela resolvia rapidamente, bastava rever a agenda tradicional na qual haviam registrados todos os pormenores daquele mês.
Faltava pouco menos de trinta minutos para que Zeca comparecesse ao ponto de parada dos ônibus que levariam os sócios-torcedores para mais um jogo de campeonato. Desta feita o jogo ocorreria em outra cidade, distante cinquenta quilômetro. Ele e outros sócios-torcedores, os que mais contribuíam e que não atrasavam o dia do pagamento do carnê, tinham cadeiras cativas nas viagens para jogos em outras cidades.
— Pronto, Luzinete?! Já terminou com Hudson? — disse ao olhar para o seu relógio de pulso. — Já está quase na hora de sair. Daqui para o ponto onde o ônibus irá passar são uns dez minutos a pé. Como ele irá caminhar comigo levarei um pouco mais de tempo. Então, ver se termina logo isso — disse, do outro quarto vizinho, num tom de voz mais elevado ao olhar-se no espelho e conferir a posição do boné.
— Calma, Zeca — disse de modo incisiva — toda vez que tem jogo você quer levar Hudson, além do mais, termina comprando um monte de burundanga para pendurar nele. Você não acha que está exagerando? Se você economizasse um pouco mais nestes gastos teria tempo para deixar Hudson pronto mais rápido, e ainda daria para pagar as contas que você frequentemente atrasa.
Zeca aparece na porta do quarto de Hudson, olha de maneira a reprovar a fala de Luzinete:
— Toda vez que eu falo em ir ao jogo você tem que colocar as contas no meio — disse rememorando a mesma ladainha de protesto. — Por quê? Será que eu não posso me distrair um pouco, e nem levar nosso filho para onde ele gosta?
Luzinete conhecia bem as velhas táticas que ele usava para justificar algo que, muitas das vezes, era injustificável.
— É ele quem gosta, ou é você que gosta? Hudson não tem ainda idade para entender sobre jogo de futebol.
Ao saber que a desculpa na qual usou tinha sido desmascarada, tratou lodo de acrescentar um fato, possivelmente sem nenhuma segurança de comprovação, mas somente de justificativa.
— Será que não?! Quando ele está no estádio e ver o povo gritar e fazer algazarra fica feliz com tudo aquilo; até grita também. Isto não é bom para ele?
Para Luzinete as velhas táticas já não surtiam efeitos; até ficavam muito fáceis de serem contestadas.
— Não sei dizer se isto é bom, mas posso afirmar que isto não é justificativa. O que é bom para você nem sempre é bom para ele. Será que ele não ficaria melhor brincando com os colegas daqui da rua? Alguns deles vêm aqui procurá-lo, quase sempre está com você nos treinos do time ou no jogo de campeonato. Eu acho que você está exagerando em levar constantemente Hudson para assistir aos jogos.
As queixas de Luzinete faziam sentido. Há sete meses que Hudson não se encontra com seus amigos para brincar em casa. Eles somente se viam na escola. Luzinete esperava que nestas férias Zeca iria deixar ele brincar com seus amiguinhos, porém isto não aconteceu; pelo contrário, Zeca assumiu todos os horários da criança o levando para assistir treinos e jogos, e ainda o colocava sentado em casa, ao seu lado, para assistir aos jogos na HBO Max e no Premiere — streaming nos quais era assinante. Se não bastasse isto tudo, ele ainda o levava para ensinar a chutar bola na praça de esporte de fronte a casa deles.
— Não me venha com esta conversa novamente, Luzinete. Ano passado a gente conversou sobre os supostos amiguinhos dele, os quais o caçoavam. Num dia desses Hudson chegou em casa arranhado e sangrando porque o Ubaldo, o amigo que ele mais gostava, o empurrou. E agora você está os protegendo.
— É coisa de criança, Zeca, — disse ao olhar para trás e ver Zeca sentar-se na cama — claro que a gente tem que tomar algumas providências e conversar com os pais de Ubaldo, mas isolar Hudson de seus amigos está errado. Deixe-o viver a vida dele, e não a sua. Deixe-o ser criança. Ademais, e ultimamente, só o que vemos são violências em jogos. O tal divertimento que você fala, já é passado. Hoje, os estádios parecem mais um coliseu de gente sedenta de agressividade. Este tipo de ambiente não é para crianças, não é!
Zeca olhou novamente o relógio, viu que se puxasse mais conversa com Luzinete iria perder o ônibus.
— Vamos mudar de conversa, estou perdendo tempo aqui, cuide aí para que eu possa ir pegar este bendito ônibus. Ah, vou esquentar aquele lanchinho dele para que possa levar.
— Zeca, não tem gás. Lembra-se que ontem pedi a você para deixar um pouco de dinheiro porque o gás já estava quase no fim?
— E por que não comprou com seu dinheiro, Luzinete?
— Porque tive que pagar a mercearia. Seu Francisco não queria mais vender sem que pagasse completamente a conta que se estendia há mais de seis meses. Só depois de pagar foi que consegui comprar algumas coisas para o almoço e a janta. O café da manhã foi preparado na casa vizinha. Tivemos sorte que Raquel é uma boa pessoa e ela se dispôs a ajudar.
— Está bem, vou levar o lanche frio assim mesmo. Quando chegar a gente conversa sobre isto.
Pegou a marmita que estava na geladeira, olhou para o relógio pendurado na parede e exclamou:
— Nossa! faltam quinze minutos. Vamos Hudson, sua mãe nos fez perder muito tempo. Vamos embora.
E pegando na mão do filho puxou-o bruscamente, deixando Luzinete, que estava penteando o cabelo dele, a ficar com o pente pendurado na mão. Saiu às pressas. Luzinete foi até o portão para ver os dois cruzarem a rua até a avenida sete, do outro lado da praça. Os dois corriam como se o mundo, para eles, fosse somente aquele instante.
Mas na verdade havia outro mundo, o mundo de Luzinete, o mundo das virações financeiras. Sua missão naquele instante era, mais uma vez, pedir a ajuda de Raquel para que ela emprestasse dinheiro para comprar o botijão de gás. Ela precisava preparar o almoço do dia e guardar o restante para amanhã.
O ônibus apareceu no horário exato, Zeca já cruzava a esquina aos gritos, estava a cem metros da turma do Timão. Entrou no ônibus esbanjando felicidade, e seus amigos pronunciaram o grito de guerra: hip-hip-Hurra! Todos cantavam o hino “Timão-perfeito”, era uma composição amadora criada entre eles para cantarem os feitos nos eventos. Hudson estava sentado ao lado do pai e soprava continuamente na cornetinha, todos seguiam rumo ao campo sagrado, onde ocorreria mais uma batalha, mais um feito para a história.
Em Cruzadas, cidade de trezentos mil habitantes, onde ocorreria a partida, os quatros ônibus dos torcedores e um dos jogadores cruzam a avenida principal. O time vai na frente e os demais seguiam em cortejo, cantavam o hino quando um dos torcedores, que estava no ônibus, olhou para o outro lado da rua e viu algumas barricadas de toneis que exalavam fumaça, um tipo de fumaça negra.
Todo um lado da avenida tinha centenas de pessoas ao longo da via compenetradas na comitiva adversária. A cada trezentos metros era possível ver alguns os toneis, alguns até com labaredas de fogo. Ao lado de cada tonel havia dois mascarados com as cores do time adversário. Apesar da recepção macabra daquele momento a comitiva passou tranquila. Seguiu direto para o estádio onde haveria a competição.
Neste dia ocorreria a eliminação de um dos dois times. Os ânimos nas arquibancadas estavam exaltados. Estádio lotado: gritos, apitos, berros e rojões de fogos de artifícios ressoavam. Embaixo, no gramado, jogadores tensos. O jogo começa com poucos policiais para dar suporte a partida, técnicos batiam-boca com os organizadores, informavam sobre a insegurança no campo. A torcida de ambos os lados jogava latas, bananas e pulavam imitando macaco. Pequenos focos de tumultos são identificados pela polícia, que tentavam prender os agressores.
— Zeca, vem ficar na parte mais alta — gritou de lá o Carlão.
— Não. Aqui está melhor, estou com meu filho aqui embaixo, acho mais seguro.
Zeca conhecia bem Carlão, foi seu amigo de infância, era um cara de pavio curto. Não levava desaforo para casa. Na última partida, em um jogo em casa, ele agrediu um torcedor de outro time só porque o adversário chamou o Timão de timinha. Neste dia, Carlão estava com mais dez outros companheiros que topavam qualquer parada. Zeca não era disso, mas apoiava certas aventuras violentas do grupo.
— Sente aqui, Zeca — disse Ricardo apontando para um vaga ao seu lado. — Aqui está mais tranquilo, lá em cima tem muita confusão. Aquela turma lá não é de brincadeira.
— É verdade. Nesta parte mais baixa da arquibancada, com acesso as saídas de emergência, é bem mais tranquila. Ainda mais, com Hudson na minha cola não dá para vacilar.
Os gritos intensificam-se e os ânimos sobem a cabeça dos mais esquentados. Foi exatamente no local onde estava a turma da pesada que uma faísca de chama de fogo de artifício, vindo do lado do adversário, atingiu a camisa de um torcedor do Timão. Nada grave. Mas foi o estopim para as agressões aumentarem em seguida.
— Eu vi, eu vi, foi ele quem soltou a faísca que pegou na camisa de Paulão — disse Bruno ao apontar para um rapaz de uns trinta anos acompanhado com dois homens que estavam com as máscaras na mesma cor daqueles que estavam ao lado dos toneis em chama na avenida principal.
— Fique de olho nele, Ricardo — gritou Carlão.
Entre o primeiro tempo do jogo e o intervalo, os policiais fizeram prisões e recolheram diversos materiais como artefatos de bomba caseira e spray de pimenta. Grupos de adolescentes foram pegos, utilizavam pedaços pequenos de madeira com pontas afiadas.
Veja a 2ªparte ao clicar AQUI
Ótimo texto, poderia ter até uma parte 2 kk. Continuem assim
CurtirCurtir
Olá. Obrigado pela leitura. Ah, tem sim a segunda parte, veja aqui: https://enecessariosaber.com/2022/06/17/vidas-em-jogo-2aparte/
CurtirCurtir