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— E em outra escola particular, mãe? Não seria melhor?

— Às vezes escola particular, como você já viu, é pior do que a pública, — disse enfaticamente Maria, completando logo em seguida, — não adianta mais mudar para outra, todas se parecem umas com as outras. Se compararmos, ou elas são iguais nos problemas ou são piores. O que me interessa é a sua formação cidadã, por isto que decidimos não mudar mais de escola.

João Miguel era ciente do que significava formação cidadã. Em todo o seu ensino básico sempre ouvia a frase da boca dos professores, ou mesmo, via estampado em uma faixa na frente da escola: “Para Sobreviver, ser cidadão ou cidadã é fundamental”.

— Mas mãe, boa parte dos estudantes não quer participar das atividades. Não leem nada e não fazem os próprios trabalhos, reproduzem tudo da internet. Além do mais, aqui, nesta escola, eles induzem a gente a participar de competições. Lembro, que as professoras de sociologia e filosofia, lá da Escola Caminhos da Vida, nos diziam que a educação tem que ser atrelada ao bom convívio, e não ao embate competitivo entre as pessoas. É tanto que os trabalhos eram realizados em equipe dentro de cada grupo, e cada grupo dependia de outros grupos para que pudessem concluir a sua tarefa. A gente partilhava informações uns com os outros. Aqui, todos os grupos de trabalhos se isolam uns dos outros e dentro de cada grupo há os que sofrem sozinho por fazer o trabalho sem ajuda do próprio companheiro que se recusa a ajudar. Quando um grupo procura outro é para copiar o que o outro fez, e não para partilhar informação.

Miguel ouvia com certas objeções as lamentações do filho e as explicações de Maria. Ao perceber um pequeno silêncio entre eles, aproveitou para entrar na conversa a fim de amenizar o desassossego do filho e o dele também.

— João, você está acostumado com a vida boa do nosso povoado. Por mais que Sobreviver seja bom de morar, há nele coisas ruins também. Está tudo misturado, muitas vezes em dosagens incompreensivas. A gente fez de tudo para manter a proteção, quero dizer, livrar você momentaneamente das intemperes da natureza, das incertezas da condição humana e da difícil vida em sociedade. Viver não é fácil. E você entenderá melhor com o avançar da idade. Você precisa conhecer outros mundos, para que possa descobrir o quão difícil é manter a existência do nosso povoado. O seu coração busca o sossego, mas a vida não oferece este sossego de mão beijada. Muitos que estão no povoado passaram por dificuldades, umas até sobre-humano. Trabalhamos duro para mantermos aquele ambiente. O nosso Sobreviver nos protegeu; porém, esta proteção não é eterna. Lá teremos um ponto para descanso, sendo que crianças e idosos terão mais privilégios e um pouco mais de conforto. Os demais, os que estão na ativa, vão lutar para que estes privilégios sempre existam. No momento você perdeu o seu, irá retomar no fim da sua jornada, caso queira voltar para lá. Hoje é hora de enfrentar o mundo.

Miguel é filho natural de Sobreviver, seus pais nasceram lá. Foram seus bisavôs e bisavós, com outros grupos — pescadores, agricultores, rendeiras, parteiras e artesões — quem participaram da criação do povoado. Alguns eram escravos e filhos de escravos que tinham participado do movimento Quilombola. Naquela noite, Miguel teve que apresentar a João, de maneira suscinta, mas emotiva, todo o desenrolar da criação de Sobreviver.

Já passavam das vinte horas e trinta minutos. Nas bordas dos pratos notavam-se a presença de gordura solidificada, parte dela boiava sobre o líquido amarelado com pedaços de carne. A conversa se fazia importante, o horário mais ainda, pois o período da noite era o momento em que os três estavam juntos.

— Fundaram Sobreviver como um local onde pessoas excluídas da sociedade, ou mesmo sem perspectivas de futuro, pudessem mostrar as boas qualidades humanas que tinham e seus potenciais de organização e vontade de trabalhar. Viver em Sobreviver foi preciso muita paciência, determinação e coragem. O povoado foi tema jornalístico, foi até capa de revista. — disse Miguel, mostrando-se empolgado.

— Então, pai, por que eu teria que passar por isto agora? Eu poderia ter terminado meu ensino médio lá.

Assim que João terminou de fazer a pergunta ao pai, Maria olhou para Miguel. Ela sabia que o filho passaria por provações, sabia que ele tinha aprendido a formalidade social, sabia se expressar e entender um certo linguajar figurado, mas estava ausente nele a malícia da sociedade. Ele só tinha visto nos livros, agora teria que ficar cara a cara com o que leu nos livros clássicos. Ela sabia que ele iria usar o que tinha aprendido, mas estava assustado com a vida real fora do mundo familiar.

— Sim, poderia. Mas eu e sua mãe teríamos que optar em não assumir o emprego em São Paulo. De todas as formas você teria que sair um pouco do convívio familiar do nosso povoado. Sua boa formação escolar necessita de mais referência prática, e a gente necessita de dinheiro e experiência para contribuir com o crescimento de Sobreviver.

— Como eu posso contribuir também, pai?

— Com estudos. Agora em um novo ambiente. Você irá adquirir experiência, vai se formar e oferecer, gratuitamente, algum serviço que possa contribuir com todos que estarão lá. É assim que tentamos manter nosso paraíso na Terra.

— E quanto aos meus amigos, ainda vou vê-los pessoalmente?

— Creio que sim. Basta fazer a sua parte, e torcer para que os imprevistos não lhe tirem da rota, ou seja, de que as dificuldades nas quais você irá encontrar não o desviem daquilo que você mais quer atingir. Lembre-se, meu filho, você terá que fazer amigos aqui também. Mantenha a calma. Aos poucos tudo será conquistado, e o que não for possível conquistar, é porque não é a hora para ser, ou talvez não seja tão importante para sua vida.

— Então, pai, e mãe, vou tentar fazer o melhor.

— Como você sempre fez. — disse Maria, já mais animada com um pequeno brilho no olhar do filho.

— Sim. Como sempre fiz. Vou ficar em contato com meus amigos de Sobreviver pelas redes sociais, até que chegue o dia em que os verei pessoalmente. Eu só não sei até quanto tempo aguentarei naquela escola. Mas em nome dos meus amigos lá de Sobreviver, vou dar o melhor.

Neste momento, sem nada mais para falar naquela noite, com parte da janta ainda na mesa, a fome havia passado, antes da retirada para dormirem, os três sorriram.

Pronto, mais um fragmento de felicidade foi conquistado.

Passava das vinte e uma hora, Miguel e Maria foram lavar os pratos da janta e preparar o almoço para o dia de amanhã. João foi para seu quarto com animo na certeza de que, com a sua força de vontade, venceria os obstáculos que aparecessem.