Lá está ele, João Miguel, em sua sala de aula, no canto da sala, diante de uma turma de trinta estudantes. Sentia-se perdido, deslocado da turma. De um metro e cinquenta e cinco, o mais baixo da turma, olhos negros, cabelo liso, nariz sutilmente achatado, moreno claro. Era o mais inteligente da turma, estudara em uma escola pequena, num povoado. Agora estava em outro mundo, mais complexo e muito diferente do local onde nascera

Sobreviver, com cerca de oito mil habitantes, parecia mais como uma grande família onde todos se aglutinavam em uma pequena área na região seridoense do Oeste Potiguar, a meia distância entre a Serra de São Miguel e a cidade de Mossoró. Alguns dos residentes eram profissionais da agricultura, da pesca, do artesanato entre outros. Parte do povoado trabalhava na segunda maior cidade da região, que ficava a sessenta quilômetros. Em Sobreviver havia pedagogos e mão de obra qualificada para fazer valer uma educação esmerada. Foi neste local onde João Miguel estudara parte de seu ensino básico. Sua educação fora dentro das melhores condições possíveis para aquele ambiente.

O ensino era em tempo integral, alguns professores moravam no povoado. Na escola Caminhos da Vida havia quadra de esporte, sala de música, auditório, refeitório e uma biblioteca. Esta ficava em um local separado das salas de aula por um grande corredor florido com várias árvores sombrosas da região. Era lá que João e vários de seus colegas frequentavam quando chegava o momento da “Viagem sem sair de onde está”. Era uma espécie de leitura em grupo, intermediado por três professores; havia encenações de algumas passagens dos livros, realizavam-se adaptações para crianças de certos clássicos da literatura universal. Foi nestes moldes que João Miguel chegou a terceira série do ensino médio. Contudo, não pode cursar o último ano do curso básico em Sobreviver, pois seus pais haviam sido contratados por uma empresa internacional para passarem sete anos de serviços em São Paulo.

Miguel Soares e Maria Cecília assumiriam cargos técnicos com boa remuneração. Miguel Soares alimentava boas esperanças com o contrato, Maria Cecília pensava também na melhoria de vida, mas via além das comodidades mundanas. Intuía algo desalentador trazido pelas novas bonanças. “Antes da tempestade vem a calmaria, e na sequência a contagem dos corpos”, dizia a sua avó, Matilde, contadora de historinhas para crianças. Suas histórias eram de arrepiar, quase sempre terminavam com tragédias, com raros finais felizes.

O pai de Maria, Seu Francisco, vez em quando, acompanhava as histórias de ficção da sua mãe; muitas vezes protestava dizendo que ela estava aterrorizando Maria. Matilde, aos oitenta e cinco anos, dizia: “Isto é a vida, meu filho”, isto é a vida”.

Para João, a cidade grande era nervosa, barulhenta e desconexa. Muito diferente da vida que havia levado até então. Na escola da cidade grande, Escola Estadual Campos Paulista, a qual ele frequentava, sentia dificuldade de se entrosar com os colegas. Na sala de aula os estudantes não ficavam quietos, sempre atrapalhavam a aula com conversas fora de contexto. A professora constantemente parava o assunto para poder resolver alguma intriga, sempre relacionado a bullying e drogas, ou mesmo para solicitar que alguns estudantes parassem de acessar o Instagram na sala de aula.

As horas de aula na Escola Estadual Campos Paulista era mais reduzida, somente pela manhã. Mas João, ao término das aulas, ia para a lanchonete almoçar, e logo em seguida frequentava a biblioteca, ficava lá até às dezessete horas. Quinze semanas haviam se passado naquela nova escola e até aquele momento ele não conseguia conquistar algum relacionamento sério na sala.

Somente na vigésima primeira semana que ele conseguira aproximar-se de um dos grupos da sua turma, mas toda vez que ele puxava uma conversa com alguém do grupo eles desviavam a atenção para as redes sociais.

— A minha sala parece não querer mais conversar comigo nos intervalos, e parece até que querem isolar-se de mim, mãe. — disse João, sentado à mesa do jantar, angustiado, ao olhar primeiro para Maria e depois para Miguel.

Sentia um certo peso na cabeça, sofria pela ausência de empatia e da sensação de que era o “diferentão”. Tentava, com dificuldade, dar mais explicações.

— Na escola não há grupos de estudos e nem leituras como a gente tinha na escola em Sobreviver. Os estudantes daqui gostam mesmo é de ficar o tempo todo produzindo vídeos para um tal de Tik Tok. E o pior, eles fazem isto também na hora da aula, mesmo sob protestos dos professores. Sou considerado o “esquisito” da turma porque não partilho dessa falta de educação.

Os pais ouviam atentos os reclames do filho. Miguel, sentado à mesa de jantar, e próximo de Maria, cortava lentamente com as mãos pedaços de um pão e os colocavam dentro da sopa de frango com legumes. Levantou lentamente o olhar na direção de Maria, mas não expressou nenhuma palavra, sua maneira de olhar parecia dizer: “Você estava certa, mas eu também estou”. Os dois haviam pensado em alguns problemas nos quais teriam que enfrentar ao mudarem para outra cidade.

A despeito dos eventuais problemas com a mudança da família para São Paulo, Miguel sempre tentava convencer Maria de que tais angústias seriam momentâneas e necessárias. Para eles, o contrato naquele momento era tudo o que precisavam para equilibrar as contas e ainda contribuir para construção de uma praça esportiva em Sobreviver. Embora Maria percebesse diversas situações desfavoráveis a João, — este recebera boa educação, estava preparado para a vida formal, o mundo educado, mas viveu resguardado pelas muralhas do castelo do povoado, distante dos escárnios do mundo cão —, acreditava também que era necessário.

No entanto, Maria sempre dizia que deveriam fazer o processo de mudança de João de modo gradual. Pensava que seria melhor aceitar a proposta daquele emprego em Mossoró, uma cidade bem menor do que São Paulo, mas bem maior do que Sobreviver. Não obstante, Miguel sempre vinha com alguns contrapontos às ideias dela.

Afirmava que eles não teriam como protegê-lo pelo resto da vida, e que já era hora dele sentir o peso de viver em sociedade, com gente diferente da região deles. Partilhava da ideia dela de que a adaptação poderia ser em um local de menor porte, mas a remuneração salarial em São Paulo era mais do que o dobro se fosse comparado com a de Mossoró; e em São Paulo João teria mais oportunidade de estudos, cultura, lazer e emprego.

Todavia, naquele instante no qual ouvia João despejar tanta tristeza acumulada durante os meses que passara na nova escola, Miguel já dava sinais de arrependimento por ter aceitado o emprego. Pesaroso olhava para Maria, que também se encontrava desanimada, sentindo um amargo gosto metalizado na boca. Ela também alimentava uma certa culpa, havia concordado em levar João para terminar os estudos em outra cidade, pois achava que, de certa forma, o esposo tinha razão.

Racionalmente se convencia que aquela culpa era apenas o sentimento de desconforto gerado pela mudança, como havia dito Miguel na última vez em que conversaram sobre o assunto. Com pesar, Maria tentava justificar o desconforto do filho ao mostrar que o problema era por conta do hábito criado junto ao povoado Sobreviver.

— Entendo, filho. Sei que você é um bom rapaz, já passou dos dezesseis anos. Ainda está acostumado com aquele ambiente amigável do nosso povoado. Coisa que aqui não temos isso. Aqui é uma luta feroz pela sobrevivência. É local agitado, todo mundo parece estar sem tempo viver a vida. Cada um tentando resistir da maneira menos angustiante possível. Assim também é na escola. Eu e seu pai já mudamos você de escola pela terceira vez com a intensão de conseguir um local mais agradável, mas pelo visto, até o momento, não está surtindo efeito.

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