
Vamos ter que colocar câmeras aqui também, Mônica. Disse Thomas apontando para a sala e os quartos dos filhos.
A família passara por um assalto traumático há seis meses, quatro meliantes entraram em sua casa e renderam a todos. Levaram os aparelhos eletrônicos, cincos notebooks e três HDs externos. Ao entrar no quarto do casal depararam-se com um cofre. Pediram a senha, retiraram dele dinheiro, uma quantia de três mil reais, algumas papeladas e duas alianças de ouro. O roubo foi rápido, porém bastante traumático, em menos de vinte minutos a operação estava resolvida.
Contudo, o trauma maior foi quando dois dos assaltantes entraram nos quartos dos filhos do casal. Um deles arrancou Pedro, de treze anos, da cama aos gritos. O meliante apontou o cano do revólver para a cabeça de Pedro e o levou para a sala. Pedro estava enrijecido, paralisado de medo e com o calção de dormir ensopado de urina.
O outro assaltante, mais afobado, puxou Raquel, de dezesseis anos, pelos braços e a levou para a sala onde os demais estavam. Raquel estava vestida em um baby doll de algodão na cor rosa, e foi alvo dos olhares dos demais meliantes. O mais alterado dos meliantes, o que puxou Raquel da cama, olhou para ela dos pés à cabeça e disse aos pais que a filha deles iria perder a virgindade naquele dia, e puxou-a com brutalidade e a levou para o quarto do casal. Raquel, quase sufocada, tentava gritar, mas o meliante tinha tampado a sua boca. Mônica e Thomas se ajoelharam e, aos prantos, pediram para que impedissem ele de fazer tal maldade.
Thomas, com a agonia atravessada em sua garganta, a boca seca, quase sem voz, soluçava continuamente, fazia gestos com as mãos postas como se estivesse em oração e desejasse profundamente ser atendido. Mônica, abalada, corpo tremendo, com o rosto banhado de lagrimas, disse com todas as suas forças, ainda que minguada: — Meus senhores, eu rogo por tudo que tens de bom em seus corações, que a magnificência da mãezinha natureza, e de nosso Deus glorioso, que dentro de vossos corações está, ainda que oculto, faça nascer uma centelha de humanidade e que por esta centelha peço humildemente que deixem nossos filhos em paz. Levem tudo que quiserem, me levem e faça o que quiserem de mim, mas deixem eles em paz, pelo amor de Cristo!
Os três outros assaltantes, em uníssono, como uma ordem advinda dos deuses sob o jugo da força do convencimento, contiveram a ação do outro amigo meliante ao afirmarem que deveriam seguir o que foi combinado. O meliante mais antigo, talvez o chefe do bando, beirava seus cinquenta anos, justificou que a família não havia mostrado resistência. Neste caso, deveriam levar tudo o que foi combinado e deixá-los em paz. Assim, antes de saírem conduziram sob empurrões todos para dentro de um dos banheiros, mas antes de fecharem a porta o meliante que tentou estuprar Raquel disse que se eles denunciassem a polícia ele iria voltar e terminaria o serviço que ficou pendente.
Um mês depois, ainda abalados pelo trauma, eles resolveram voltar para casa, tinham passado os trinta dias morando em um sítio a trinta quilômetro de distância da sua casa na cidade. No terceiro mês após o assalto resolveram reforçar a segurança da casa, colocaram travas eletrônicas nos dois portões, cerca elétrica em volta do muro, mecanismos de segurança nas portas e janelas, contrataram segurança motorizada especializada, além de aumentar o número de câmeras. Contudo, Thomas ainda não estava satisfeito, tentou convencer a esposa a colocar câmeras dentro de casa.
— No quarto de Raquel e de Pedro, Thomas? Você não acha que está exagerando?
— Por que estaria?
— Ora, vai tirar a privacidade deles. Nós já colocamos travas eletrônicas nas janelas dos quartos e nas demais janelas da casa, assim como nas portas de cada quarto.
— Ora Mônica, estou pensando na segurança e no futuro dos nossos filhos.
— Mas, e a liberdade? E que futuro é esse, o futuro de ser prisioneiro em sua própria casa?! Eles serão vigiados continuamente, é isso?
Mônica Miranda Jales é socióloga, mora num bairro nobre da segunda maior cidade do Rio Grande do Norte, presta serviço de consultoria a empresa e é voluntária da delegação da Cruz Vermelha. Com quarenta anos de idade mantem-se sempre postura altiva, mulher decidida, sempre aberta ao diálogo, embora reconheça que certos diálogos são difíceis de serem mantidos quando o outro finge querer conversar. Foi assim quando ela conversava com seu esposo, Thomas Albuquerque Junior — cinquenta anos, dono de uma loja de instalação e venda de equipamentos de segurança, prestadora de assistência técnicas a outras empresas, residências e instituições públicas e privadas — a tal conversa era sobre a postura dele em tirar a privacidade dos filhos.
Desde o ocorrido roubo ele vem alucinadamente tentando transformar a casa deles em moradia de segurança máxima. Entretanto, Mônica vem pelejando a todo custo, através de conversas e boa dose de convencimento, mostrar a Thomas que os meios pelos quais ele quer conseguir mais segurança só torna tudo mais difícil e menos seguro, posto que os mantem prisioneiros em sua própria casa. Tornam-se escravos permitidos, já que segurança sem liberdade é escravidão.
— Acho que não preciso dizer a você o que passamos, não é verdade? Então, Mônica, deixe-me fazer do meu jeito, vamos experimentar. Nós temos recurso para isso. Tenho know-hall e vou usá-lo em nosso favor, e em nossa casa. Se não der certo a gente retira tudo. Além do mais…
Mesmo tendo muitas objeções sobre a fala de Thomas, Mônica escutou quase tudo o que ele tinha para dizer. Sentada no sofá da sala ela se ajeitava no encosto, sabia que iria demorar mais do que o necessário até que ele pudesse encerrar. Esperava a vez dela para poder falar. Contudo, após quase meia hora de justificativas, tentando explicar todos os procedimentos técnicos de uma simples trava de porta, até entrar nos detalhes das câmeras, por exemplo, com alta definição e sensor ultramoderno capaz de captar e gravar som etc.
Tudo aquilo era irrelevante para o que Mônica queria conversar. Passava a ouvi-lo, e não mais a escutá-lo. Queria discutir com ele os possíveis efeitos daquela parafernália toda na família, principalmente na vida dos filhos, e não lhe interessava saber da qualidade do material ao qual iria, supostamente, proteger os filhos. Ela preparava-se para interrompê-lo quando notou que ele cortou a fala para beber água, e foi neste hiato que ela conseguiu entrar e lançar seu ponto de vista.
— Olha, Thomas. Deixa-me falar um pouco …
— Mas eu não terminei, Mônica.
— Vai fazer meia hora que você expõe oralmente seus brinquedinhos, fiquei aqui este tempo todo lhe escutando. Agora é a minha vez de falar. Não concordo que tenhamos de colocar câmeras nos quartos. Até concordo com as fechaduras, as travas e as câmeras somente no lado de fora, mas não concordo com elas dentro de casa, e muito menos nos quartos. Isto seria invasão de privacidade. Quem vai garantir que será seguro?
Não há segurança absoluta. Prefiro a liberdade, ainda que incerta, do que a falsa segurança. Ela nos torna ainda mais vulneráveis. Quanto mais nos sentimos seguro, mais caro o custo emocional e econômico, mais fácil será a quebra da proteção das nossas defesas psíquicas. Lembre-se que os bandidos entraram aqui mesmo com as câmeras ligadas. Serviu para alguma coisa? Nós temos as imagens deles, mas seus rostos estavam encobertos. Nós poderíamos até denunciá-los, contudo você achou melhor não o fazer porque ele havia ameaçado voltar caso os entregassem a polícia. Embora não concordasse com suas ideias, a gente entrou em consenso e não fizemos o boletim de ocorrência.
Thomas prestava atenção aos gestos dela ao falar sobre o assunto, só que a mente dele estava voltada para uma nova ferramenta que a sua empresa instalaria na próxima semana na instituição de educação na qual os filhos deles estudavam. Era um sistema de câmeras com microfones instalados e com acesso remoto, que deveriam ser colocados em pontos estratégico na escola, incluindo a sala de aula, para que os pais pudessem ter a certeza de que seus filhos estavam na escola. Este novo sistema, com chips fixados nas fardas dos estudantes, registrariam as entradas e a saídas pelos portões da escola, assim como a permanência de cada estudante na sala de aula, além de mostrar o local exato onde cada um estaria naquele instante. Mônica já estava sabendo que a empresa dele seria responsável pela instalação e preparo dos funcionários da escola para trabalhar com os equipamentos e aplicativo.
— Você entendeu por que que eu não concordo com câmeras nos quartos, Thomas?
Ele não havia entendido nada; aliás, nem escutou o que ela havia falado sobre o porquê de não se colocar as câmeras no quarto. Mas para mostrar que havia entendido tudo foi logo dizendo:
— Sim. Claro que entendi. Vou até aceitar seu ponto de vista. Não vou colocar as câmeras nos quartos, mas vou colocar nos corredores, cozinha e sala.
— Mesmo assim ainda acho que você está exagerando. Sei muito bem o que passamos naquela noite, mas não podemos basear nossas vidas apenas naqueles instantes de torturas psicológicas. Se fizermos isso criaremos mais problema para dentro de casa, entende?
Novamente Thomas estava distraído, com uma calculadora na mão e alguns projetos na tela do computador, e em cima de uma banquinha de vidro uma taça de vinho do Porto.
— Thomas, está me ouvindo?! Parece que não. Gostaria de parar o que está fazendo para conversarmos sobre o assunto? Dessa forma fica inviável conversar com você, parece até que estou aqui em um monólogo enquanto você está em outro local.
— Olha, Mônica. Desculpe-me, mas vou-me ocupar neste projeto que tenho que entregar na próxima semana. Será que podemos conversar depois?
— Como assim, conversar depois? Eu esperei você falar por longos minutos e você não pode esperar um pouco mais para escutar o que tenho para dizer? Que egoísmo é esse, Thomas?!
— Mas eu estava ouvindo!
— Sim. Você estava ouvindo, mas não escutando. Se eu pedir agora para você dizer o porquê que eu não concordo com as câmeras no quarto você não saberá dizer uma só palavra do que eu disse.
— Pode até ser, mas concordei com seu ponto de vista.
— Isto não é suficiente, embora seja pertinente.
— Tudo bem. Deixa-me trabalhar agora e depois conversamos sobre isto. Vou para a sala de estudo.
Thomas levantou-se e saiu. Mônica, ainda inconformada pela falta de consideração por parte dele em não escutar a sua opinião, teve que conter-se.