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Ela estava sentada. Sentia-se bem, os dias de tréguas deram a ela um certo sossego característico de um romance amigável. Estava ali, com carinho nos olhos e o desejo de que tudo se manteria mais harmonioso. Por outro lado, as sensações de incertezas, vez em quando, tentavam aflorar. Mas ela evitava pensar no pior. Substituía o sentimento ruim pelas lembranças agradáveis que tivera no início do romance. Neste dia, por alguma razão desconhecida, eles não tinham se encontrado no ônibus e nem tinham conversado na noite anterior. A despeito destes desencontros, para ela estava tudo bem.  Entretanto, para Marcos, a coisa não estava tão bem assim. Vinte minutos depois de Fernanda sentar-se no banco, ele aparece no corredor. Estava a uns trinta metros dela, vinha em sua direção. Fernanda percebeu que algo estava diferente nele, o andar apressado, o rosto truncado e lábios contraídos. “Ai, meu Deus! O que foi agora?”, pensou e suspirou tensa. Ele sentou-se ao lado dela, com olhar incisivo, perguntou se ela gostava mesmo dele ou estava querendo enganá-lo. Fernanda, sem entender a real intensão da pergunta, devolve a resposta com outra pergunta:

— Será que nosso noivado lhe diz alguma coisa? Sim, porque do nada você aparece com estas dúvidas. Por que você acha que eu não valorizo nosso relacionamento? Por que tanta insegurança, Marcos? Por quê?

Balançando a cabeça, de forma negativa, como quem, peremptoriamente, protesta contra uma inverdade, ele respondeu:

— Insegurança, eu? Ora, Fernanda, tudo o que eu faço é por você. Meus horários na universidade são em função de você, não saio muito com meus amigos por conta de você, só saio em sua companhia e nos encontramos todos os dias. Ou seja, doo-me por completo.

Em protesto, revelando-se definitivamente no ataque, Fernanda disse incisiva:

— Não lhe pedi nada que viesse controlar sua vida. Aliás, você é que está oferecendo a mim, sem saber o que penso sobre isso. Você me oferece um suposto controle da sua vida para que possa obter a minha. Isso é uma troca perigosa, pois sei que se eu me entregar mais, você vem com outra reclamação para obter ainda mais o domínio sobre mim. Não estou disposta a entrar neste jogo no qual sempre saio como a vilã.

Contudo, Fernanda parecia amenizar o peso das palavras quando acrescenta:

— Amo você dá minha maneira. (…)

Mas, não contendo a raiva, soltou:

— (..) que me parece passar longe da sua forma egoísta e asquerosa de dizer que é amor. Antes de você chegar, estava contente aqui, pensando que você tinha percebido de que realmente o amava. De repente tudo vira de ponta-cabeça. Uma vez você me disse, quando citava um certo pensador ao qual estava estudando, que o amor não se comanda e não poderia, em consequência, ser um dever. Esta frase não significa nada para a sua vida? Não consegue pelo menos utilizá-la para que nosso romance seja mais tranquilo?

Passando a mão na cabeça, perturbado com a fala atrevida de Fernanda, pois não esperava tal reação de uma garota que antes era delicada na fala, redarguiu:

— Você está exagerando, Fernanda. Estudo para uma profissão e não para usar o conhecimento no nosso romance. Aquela frase, muito antiga, é de Aristóteles. Não misture as coisas (…).

A frase de Marcos quase não termina quando Fernanda rapidamente completa:

— Não fui eu quem misturou. Você a usou no nosso começo de namoro. Usou várias frases, parecia que estava tentando mostrar-se inteligente para mim; memorizei e escrevi algumas delas. Posso até usá-la para mostrar-lhe que foram palavras ao vento. Eu notei algumas aqui no caderno.

Ela puxou um pequeno caderno de bolso onde estavam algumas frases que tinha ouvido de Marcos e outras que lia nos livros. Abriu com ânsia a folha onde estava a frase de Kant dita por Marcos, olhou nos olhos dele e leu a frase:

 — “O que fazemos por coerção, não fazemos por amor”.

E completou em seguida:

— Essa é de Kant, lembra dela? Cadê aquele homem compreensivo? O homem que foi generoso nos nossos primeiros dias de namoro, onde está ele?

Nesta altura da discussão, Marcos já estava bastante alterado, não esperava tamanho atrevimento. Parecia que ela era quem estava no domínio da situação. Tentou entrar na conversa por outras vias. Contudo, quando ele ia usar novas estratégias para conseguir tomar as rédeas da discussão a sirene tocou. Ela se levantou e disse:

— Vou ter que ir agora, vou fazer uma prova. Não estou muito bem para fazer a avaliação, mas não posso perdê-la outra vez por conta de suas atitudes indesejadas. Depois conversaremos. Tchau!

Marcos estava ainda mais atormentado, pensou em segurar o braço dela e exigir que o ouvisse antes de ir para a aula. Mas deteve-se quando ela deixou claro que continuariam a conversa em outro momento. Ele lembrou que encontraria no retorno para casa, no ônibus. Não entrou para assistir a aula, ficou no banco por duas horas, até chegar o horário de ir embora. Foi para a parada do ônibus, mas Fernanda não estava. Quando faltava alguns minutos para que o ônibus saísse, recebeu de seu amigo a informação de que Fernanda tinha ido para casa dela de carona com uma amiga. A informação não foi bem recebida por ele. Só aumento ainda mais as incertezas. Jurou que no dia seguinte nada o impediria de encontrar-se com ela.

Contudo, como se a natureza tentasse evitar o encontro dos dois, talvez houvesse uma batalha sangrenta cheia de impropérios, no dia seguinte ela adoeceu e não pode ir à universidade. Durante duas semanas eles não se encontraram, trocavam mensagens por e-mail e por telefone. O fogo alto das discussões anteriores, no dia do encontro no banco da universidade, já estava baixo, mas ainda restavam algumas brasas acessas. O que ele queria dizer pessoalmente não se conteve e falou quase tudo por telefone; entretanto, sem tantos excessos, mas ainda incisivo. Ela rebateu todas e disse que só iriam conversar pessoalmente, já que por telefone não era mais possível se entenderem, estavam repetindo as mesmas conversas de antes e não chegariam, desse modo, a um consenso.  Marcaram para a próxima semana, pois ela já estava quase recuperada da gripe.

Mais uma vez a natureza parecia lutar contra o encontro do casal. Na semana seguinte, rumores de uma epidemia de gripe suína rondava pela cidade, rapidamente foram tomadas providências. Todas as cidades, num raio de trezentos quilômetros, foram isoladas uma das outras. Todas as vias de acesso por terra, ar e água foram bloqueadas. Estas medidas afloraram as angústias de Marcos. Contudo, em certa medida, estes bloqueios causaram duplo sentimentos contraditórios em Fernanda. Por um lado, a tranquilizava, pois evitava as investidas presenciais de Marcos sobre ela; por outro, a angustiava, já que não se chegava a um consenso apropriado para dar prosseguimento ao relacionamento, posto que ela ainda estava desgastada pelas últimas conversas com ele. O contato era somente por e-mail ou telefone. Marcos tentava convencer Fernanda a conversarem a cada quatro horas. Ela disse que, embora estivesse confinada, precisava ajudar a sua mãe nos afazeres da casa e tempo para estudar os conteúdos que havia perdido nos dias que esteve ausente da faculdade. Sem ter como argumentar em seu favor, Marcos aceitou a condição impondo que teriam que conversar todos os dias, pelo menos nas noites. Assim aconteceu, durante dez dias Marcos manteve a fala cortês, mas com insinuações de que iria dar um jeito de burlar os bloqueios e encontrar-se com ela. Fernanda não gostou e disse que isto não era correto.

— Marcos, você está colocando pessoas em risco. Será que você não entende! O que há com seu senso de empatia? Como um bom e futuro filósofo pare e pense um pouco.

— Olha, Fernanda, me parece que você está tentando usar todas essas coisas como desculpas para não nos encontrarmos. Você não pode agora se afastar de mim, por favor, veja o meu lado.

— Como assim, Fernando. Possa até ser que tento dar um tempo em nosso relacionamento. Já falamos sobre isso. Mas agora é questão de saúde pública. E se você quer realmente saber, preferia que a gente ficasse um pouco separado para que pensássemos seriamente sobre o que vamos fazer do nosso noivado. Não é que estou querendo acabar, mas é que não consigo ter mais paz com estas suas loucuras de controlar minha vida.

Naquele momento da conversa, no povoado de São Castilho, estava ocorrendo um grande temporal. Relâmpagos e trovões riscavam o céu com luzes e sons. Marcos percebeu barulho de chuva e trovões, percebeu também que a voz de Fernanda estava alterada e escutou ela assoar o nariz.

— Você está chorando? Você chora por tudo, é? Não disse nada de grave…

Naquele instante Marcos só escutou o som do telefone como se Fernanda tivesse deligado.

— Não acredito que ela desligou o telefone!

Ele tenteou várias vezes retomar a ligação. Não conseguindo, enviou e-mail. Por duas horas esperou retorno. No limite da paciência, esperou mais vinte minutos. Nada de retorno.

— Ela vai ouvir poucas e boas!

Saiu desesperado a fim de planejar como iria chegar ao povoado São Castilho. Passava das vinte horas quando ele saiu às escondidas da casa dos pais. Ele olhou o horário para ver se daria tempo chegar até a área de bloqueio e tentar convencer ao guarda de que precisava ir ao outro povoado. Pegou emprestado a moto de um colega de classe e dirigiu-se até o posto do bloqueio mais próximo da sua residência. Foi impedido de passar. Desorientado voltou para casa. Passou a noite em claros a olhar para o e-mail e na espera de um telefonema. No dia seguinte, ainda sem obter contato com Fernanda, tentou convencer os barqueiros, responsável pelo transporte marítimo, para ajudá-lo a ir ao outro povoado. Todos eles rejeitaram transportá-lo, disseram que seriam multados e poderiam perder a habilitação náutica. Durante todo o dia tentou várias maneiras de atingir seu desejo mais imediato, chegar a São Castilho. Quando percebeu que não seria possível obter seus objetivos por aqueles métodos, buscou, sozinho, as vias da ilegalidade. Iria passar escondido, na noite de hoje, pelo mar. Antes de sair de casa ele conferiu o e-mail e tentou ligar para ela.

Não deu certo. Saiu de casa às dezenoves e foi direto para a casa de seu primo — praticante de pesca amadora que tinha um pequeno bote sem motor ancorado no porto do povoado. Marcos pediu emprestado para dar um passeio. Explicou que estava muito estressado e precisava relaxar. Seu primo emprestou o bote na condição de que não poderia sair naquela noite. Marcos disse que não ia sair, era para usar amanhã pela manhã. Seu primo entregou para ele a chave do cadeado. Na noite daquele dia a previsão era de chuva forte às vinte e duas horas. Marcos não sabia da previsão. Ao chegar ao porto identificou o bote, estava sobre a areia acorrentado em uma árvore. Colocou o bote no mar, olhou para o céu, ainda estrelado, e saiu silenciosamente, sem luz para guiá-lo, sem nenhum marcador de localização. Seu guia era o amor carnal, a impetuosidade e a sede de poder, de poder mandar.

Sentada na varanda de sua casa, ela olhava a escuridão — mais de vinte e quatro horas sem energia. A chuva forte de ontem à noite havia derrubado árvores e destruído o sistema de energia e comunicação da cidade. Fernanda estava preocupada por não ter terminado a conversa com Marcos. Ela sabia que ele era capaz de tudo para tentar colocar a discussão nos eixos, e em seu favor, o mais rápido possível. Ventos frios davam sinais de que outra chuva se aproximava. Esperava ansiosa pela chegada da energia, mas a previsão era de que tudo estaria pronto provavelmente nas primeiras horas do dia seguinte.  Naquela noite as chuvas chegaram mais cedo e mais forte do que o dia anterior, ventos fortes arrastavam galhos e derrubavam fiações dos postes. Foi mais uma noite de terror embalada pela escuridão com descargas de luzes intermites e sons apavorantes vindas do céu.

Na manhã seguinte, após horas de tempestades, ao abrir a porta de casa Fernanda e sua mãe viram os estragos. A uma quadra de sua casa estava o porto dos pescadores, e de fronte a sua casa havia uma pracinha onde ficava uma barraca na qual os pescadores se reunião para tomar o café da manhã antes de ir para o mar. A barraca estava fechada. Só havia um rapaz, pescador e amigo de Fernanda, sentando fumando cigarro. Ele a viu e foi conversar com ela. Após falar sobre os estragos no povoado causados pelas chuvas o amigo de Fernanda relatou que nesta manhã havia visto um pequeno bote à deriva próximo ao porto, estava a uns cinco quilômetros. Contou que ele foi rebocado pelos pescadores e trazido para o porto.  Estava vazio. Deu sua previsão:

— Provavelmente, se havia alguém no bote, deve ter sido colhido pela tempestade. Agora há pouco a administração do porto solicitou a guarda costeira para fazer algumas buscar nas imediações dos rochedos ou no canal de entrada do porto. É quase certo ter ocorrido algum acidente, o bote estava com a popa comprometida.

Naquele instante em que Fernanda ouvia seu amigo, e quando ela já ia perguntar se o barco era de alguém conhecido daquele porto, sua mãe gritou da porta:

— Fernanda, a energia voltou!