“O único verdadeiro amor é o amor ágape, os demais são fruto do ego”. Foi a última frase do professor da disciplina de Filosofia ouvida por Marcos Felipe antes que a sirene tocasse. “Acho que o professor não foi feliz em sua afirmação”. Pensava e balbuciava Marcos, ao percorrer o setor onde ficam as salas de aulas. Seguia em direção a parada de ônibus, rosnando de angústias. “Embora ele esteja apoiado por alguns teóricos, muitos dos quais com pensamentos arcaicos, não me convenceu essa afirmação fora de época e para o lado do impossível. Por que este amor seria o mais puro? Prefiro amor possível, prefiro o amor eros, amor carnal. O amor carnal merece sim o selo da importância. Amor de compromisso é o que me serve, por ser mais intenso.

Ágape para mim não dá, é inatingível; parece ser comida sem tempero, e fria. O amor que sinto por Fernanda é o amor carnal, quente e com sabor. Embora, venha sentido a ausência desse tipo de amor de Fernanda para comigo.  Vejo nela um amor descompromissado. Certa vez ela disse a mim que me amava, mas não vejo tanto compromisso assim; além do mais, ontem, ela estava cheia de desaforo, revoltada só porque fiz algumas perguntas sobre nosso relacionamento. Estava atrevida além da conta. Isto não é jeito de falar com alguém que tanto fez por ela, e ainda teve a audácia de não esperar por mim. Foi salva pela sirene. Ah, foi! Aliás, foi salva pela avaliação que iria prestar, porque se fosse só a sirene não teria deixado ir embora sem escutar o que eu tinha para dizer. Preciso ter uma conversa mais séria com ela. Quem ama protege, e proteger é eros”.

Desde quando ele saiu da sala de aula estava com o pensamento em sua noiva. Tinham namorado por dez meses, e noivou há três meses. Ele, estudante de filosofia, quinto período, de uma pequena universidade situada a trinta quilômetro do povoado São Roque, no Atlântico Sul. Ela, estudante do curso de Ciências Sociais, quarto período, da mesma universidade onde estuda Marcos, reside a vinte quilômetros da casa de seu noivo, em outro povoado, São Castilho, que margeia a orla marítima no Atlântico Sul. Ambos são jovens de vinte e poucos anos. Marcos, de estatura mediana e nariz empinado, era afobado. Sua afobação era a sua maldição. Aquilo no qual ele não conseguia executar em curto espaço de tempo, por não ter o domínio, o atormentava; e para diminuir suas tormentas procurava meios de distorcer os fatos em seu favor nem que isso lhe custasse muito.

Fernanda Duarte era o oposto, embora guardasse dentro de si uma impulsividade defensiva. Bela jovem de família com traços orientais, de baixa estatura, olhos como quem olha algo sob o sol a longa distância, de pupilas claras, cabelos negros e lisos, com franjinhas caídas para frente dando um ar de inocência. Suas vidas entrelaçaram-se em meio a desgostos e revoltas em suas famílias, iniciaram seus primeiros contatos no percurso de ida e volta no ônibus universitário, linha exclusiva para estudantes. Na época, ele a viu cabisbaixa e foi ter-se com ela. Pediu licença para sentar-se ao seu lado. Ela consentiu. Durante as primeiras semanas suas conversas foram sobre os problemas pessoais de ambos, somente os casos mais corriqueiros. Nas outras semanas, as conversas pendiam para apoios mútuos, seguidos de insinuações corporais e de olhares de consentimentos.

Marcos já demostrava total interesse por ela, e ela já aceitava as insinuações amorosas e de convencimento de que ele era um bom partido. Daí em diante foram poucos passos para as adaptações necessárias em suas vidas para o aconchego partilhado com encontros mais frequentes. Os locais de namoro eram na casa dela — somente nos finais de semana — e na universidade. O romance decorreu bem por alguns meses. Nas festas de fim de ano já tinham quase esquecido os transtornos familiares de anos anteriores. Os encontros passaram a ocorrer com mais frequência na casa de Fernanda ou mesmo na pracinha do povoado de São Castilho — havia uma única linha de ônibus, a cada quatro horas, de um povoado para o outro, Marcos era cliente assíduo, parecia ter cadeira cativa.

A cada encontro se revelava, em dosagem homeopática, diferenças de opiniões sobre o que seja o amor e as atitudes frente a ele.

Na volta às aulas do ano seguinte os encontros voltaram a ocorrer como de costume, seguido às vezes de brigas repentinas. Neste ínterim, o mês de junho havia chegado, aquela era uma das últimas aulas do semestre; as férias de trinta dias se aproximavam. Marcos estava desassossegado pela ausência de Fernanda naqueles últimos dias de aula. Passou o intervalo remoendo incertezas, e deu continuidade após a aula, cujo tema, Amor ágape e amor eros, veio aumentar ainda mais seu desassossego. Fernanda não havia comparecido as duas últimas semanas de aulas por estar gripada com tosses intermitentes. Ela havia enviado mensagem via e-mail para Marcos.

A mensagem informava que ele não comparecesse a casa dela. Informava também que tinha feito alguns exames e o resultado deu infecção virótica, nada grave. O médico havia recomendado repouso e que evitasse contato prolongado com pessoas para que não repassasse o vírus. Marcos, ao ver a mensagem, retornou informando que “se demorasse muito ele iria vê-la, uma gripezinha não poderia nos separar da nossa conversa que havia ficado pendente!”; a frase final carregava consigo o símbolo da exclamação, uma espécie de advertência intimativa à Fernanda.

Em casa, ainda deitada, Fernanda pensava sobre o seu relacionamento com Marcos. Ela o amava ao seu modo, mas notava mudança no comportamento dele. Lembrou do início do relacionamento, quando ele a havia conquistado. Mostrava-se atencioso e se contentava com as mínimas carícias dela meio que envergonhada. No entanto, as coisas pareciam mudar para pior. O desgosto trazia à tona comparações e lembranças das desavenças constantes entre seus pais e, em caso mais sério, o desgosto sentido quando ela teve o primeiro contato mais incisivo com o sexo oposto — era criança, tinha sofrido abuso de seu irmão por parte de pai, quando o seu pai a havia levado para conhecê-lo.

Ele tinha doze anos e ela era oito meses mais nova do que ele. Nunca contou o corrido a seus pais por achar que era brincadeira, pois pensava que o amor que o meio irmão tinha por ela, pelo menos o amor de primeira vista entre irmãos de mães diferentes, era também coisa de deus. Somente quando atingiu a idade adulta percebeu que tinha sido abusada.

Mesmo assim manteve o segredo. Os primeiros contatos do relacionamento entre seu pai e sua mãe ocorrera em uma fazenda de plantação de melão. Seu pai, estatura mediana, de feições robustas e bigode de mexicano, fora o chefe da turma de trabalhadores imigrantes japoneses. Sua mãe — geração sansei, segunda geração de japoneses que vieram para o ocidente — dona de casa, protetora da prole e serena, tinha certo ímpeto para tomar decisões quando necessárias.

O romance entre eles começara quando sua mãe desmaiara na fazenda e fora assistida por seu pai, que a socorrera para o hospital da cidade grande mais próxima. Daquele dia em diante os vínculos fortificaram-se.  Um ano depois do ocorrido eles casaram e foram passar a lua de mel na cidade na qual residiram por dezoito anos. Nesta cidade, já grávida de Fernanda, sua mãe descobrira do caso extraconjugal do esposo.

Fingira não saber, posto que não queria prejudicar o relacionamento por conta da filha ainda no ventre, precisara do apoio dele para tocar para frente o futuro da filha. Com o avançar dos anos, com a filha criada, separaram-se. Mãe e filha foram morar juntas em uma casinha naquele povoado bucólico do Atlântico Sul, longe do pai e dos agregados indesejados.

Marcos, crescera em ambiente propício ao patriarcado. Sua mãe era doméstica, mulher passiva, cumpridora dos deveres de casa, serva incondicional do marido. Seu pai era fazendeiro, tinha um pequeno rancho nas imediações do povoado e era o responsável pela produção de queijo e venda de leite para dois povoados vizinhos, incluindo o povoado São Castilho.

Marcos foi treinado pelo pai para aprender a exercer o poder, a ser o chefe da casa na ausência dele. Ensinou a exigir e ter aquilo que quiser dentro das condições que tinham, e se possível até mais do que tinham. Todos os dias seu pai o levava para a fazenda. No caminho ele dizia a Marcos: “Fazemos o que podemos, e o que não podemos agora poderemos depois, desde que mantenha a vontade de querer fazer para obter o poder”. Seu pai se casara pela terceira vez, Marcos era filho único da terceira mulher.

Não conhecera seus meios irmãos. Mas sabia que três deles eram homens com problemas com a lei. Seu pai nunca contara sobre eles. Marcos sabia por ouvir conversas de sua mãe com uma amiga dela. Sua mãe contava para a amiga que já não aguentava viver com seu pai. Só ficara com ele por conta do único filho que ela tinha. Ela não tinha dinheiro para sobreviver sozinha com a criança. Marcos preferiu não querer saber os detalhes. Afinal, para ele, seu pai era homem suficiente para fazer o que faz.

Ambos tinham acumulados emoções familiares desgastadas, entrecortadas de amores nervosos, absolutistas e desleais. A forma como estes sentimentos foram degustados seguiam caminhos diferentes na vida dos dois. Todavia, refletiam na relação do casal. Fernanda se retraia a cada investida de Marcos; e este, ao perceber a retração, avançava dois passos e meio, galgando espaço e garantindo seu domínio.

Ela sentia-se angustiada com as pressões dele forçando-a a demonstrar que o amava. Para tentar amenizar as investidas, cedia. O noivado foi mais uma maneira pela qual ela tinha para dizer que os seus sentimentos por ele eram verdadeiros. Esta nova estratégia deu a Fernanda alguns meses de sossego.

Entretanto, não demorou muito. Foi quando, próximo a completar o quarto mês de noivado, no velho banco de namoro no jardim do setor de aulas, ela percebera que o sossego acabara. Tudo voltava ao ponto dramático onde estava alguns dias antes do noivado.

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