
Durante doze dias houve calmaria na nau. A atenção era contra os perigos diários, como os humanos e roedores, mas fáceis de controlar. Havia alimento em abundância; as baratas vizinhas, e toda a família Barata, se aproveitavam dos restos de biscoitos que caíam dos humanos, pedaços de peixe podres nos quais caiam da boca dos marujos, aproveitavam também dos vômitos que escorriam para suas casinhas, dos espermas ejaculados das orgias com as crianças e escravos, dos restos de fezes que ficavam no convés — os tripulantes faziam suas necessidades trepados nos encostos do convés, direcionando o ânus para o lado da água, ou mesmo em um local no cantinho na parte de baixo — e porões e dos líquidos adocicados que estavam nos barris. Roedores e baratas, cada um a seu tempo, se saciavam provando da corda que era usada para limpar restos de fezes que ficavam presas aos ânus dos tripulantes.
Embora os usuários da corda mergulhassem ao mar para lavar, sempre ficavam restos grudados nela. Em dias de culto religioso, onde marinheiros e soldados e se união em oração, havia sempre alguém degustando biscoitos. Todas os tripulantes roedores e baratas ficavam a observar as orações do dia na espera de conseguir algum resto de alimento que caíam nas frestas.
Os doze dias foram de alegrias para Ferdinando e Chiquinha. Todas as manhãs, ao raiar do sol, hora em que os predadores estavam em suas tocas, exceto os humanos, saíam para ver a frota portuguesa. Ficavam maravilhados com o potencial criativo e corajoso do humano, com aqueles pequenos barcos enfrentavam o mundo d’água. Todas as vezes que eles iam para o convés, sua mãe e seu pai os acompanhavam. João não deixava que eles ficassem por muito tempo, o perigo de morte era iminente, posto que pela manhã era mais fácil serem identificados pelos humanos e serem mortos. Contudo, além das jovens baratas, João e Francisca contemplavam a movimentação diária dos marujos e demais tripulantes.
Na aurora do dia seguinte, ao subirem para ver o raiar do sol, notaram algo estranho. Não havia luminosidade no céu, pesadas nuvens escuras tomavam o imenso horizonte. A tripulação estava bastante agitada. Temores reinavam na nau, algo terrível estava para ocorrer. Desceram apressadamente e foram ter com Mirque para saber o que estava a ocorrer. Encontraram o idoso ainda descansando, notaram nele os movimentos dos espiráculos, por onde passa o ar, tensos. João pediu para que eles esperassem até que Mirque saísse do descanso, e propôs que voltassem para a fresta de morada.
Dentro de casa sentiam que a movimentação, principalmente no convés, era intensa. Não demorou muito até que a nau começou a balançar excessivamente. Imobilizados pelo medo, sentiram mudanças na força dos ventos; gritos e desesperos se somaram aos gemidos das madeiras da nau. Estrondos e intensa claridade vinda do céu escuro traziam terror para todos a bordo. A família Barata percebeu que camundongos de olhos miúdos e ratazanas estavam agitados, assim como os demais insetos daquele porão. Mirque aparece na casa de João muito afobado e foi logo dizendo:
— Chegamos a um dos infernos! Venham, saiam daqui imediatamente. Vamos mais para cima.
João, Francisca e seus filhotes acompanharam o idoso que subia, com muita dificuldade, para a parte mais acima do limite do porão. Três, dos cincos filhos e netos de Mirque, apareceram para servirem de guia e reconhecimento de área. Eles haviam localizado um pequenino compartimento no teto do segundo pavimento da nau. Alguns minutos após terem saído de suas casas, na base do porão, ocorreu um rompimento de uma das madeiras. O furo criou um fluxo forte e contínuo de água para dentro do porão. O volume de água subia rápido e engoliu um dos filhos de Mirque, que havia se atrasado tentando salvar uma mãe e a filhinha dela, uma baratinha branca, recém-nascida.
A força da água, em forma de vórtex, o afogou. Mirque perdia mais um filho, outro neto ficava sem pai. Agora sobraram somente um neto e um filho. Ferdinando olhou para baixo e viu alguns das suas espécies mortas. Ratazanas mortas boiavam na água, enquanto que outras, desesperadas, procuravam um ponto de apoio. Marujos e ajudantes, que haviam descidos para o porão, tentavam salvar o máximo de alimento possível, enquanto outros tentavam fechar a fenda, agora maior, com lascas de madeiras e pregos. Parte dos barris de vinho e água de beber já estavam perdidos, haviam se misturado com a água do mar.
Na parte de cima do porão, em uma fissura aberta no segundo piso, a família Barata e Mirque, juntamente com o filho e o neto deste, estavam sãs e salvos. Os demais insetos e animais haviam sobrevividos, parte deles ficaram no teto e outros foram para o convés. O velho Mirque, muito emocionado, com todos os pelos contraídos, e patas apoiadas numa lasca de madeira, contou que vem perdendo de maneira trágica seus entes queridos. Relatou que foi numa tempestade como essa, em outra viagem, na qual havia perdido a sua companheira.
— Ela estava se alimentando de um líquido verde que estava por cima de um marujo morto e todo ensanguentado. Estava grávida, feliz pela vinda de mais outros filhinhos, quando foi esmagada por um pedaço de madeira; três pequenos humanos, juntamente com um soldado, ficaram encarregados de jogar o corpo do morto ao mar, e com ele se foi a minha companheira e meus descendentes. Não demorou muito quando apareceu das profundezas um monstro que puxou os dois para as profundezas. Por tudo isso eu sei, vou morrer no mar; pois sempre o desafiei, e por conta disso, ele vem impondo a mim muitas perdas como vingança.
Ferdinando aproveitou as distrações dos pais a escutarem as histórias aterrorizantes de Mirque e subiu ao convés. Chiquinha foi logo em seguida. Lá, viram o estrago no qual a tempestade provocou na nau. Mastro havia partido, algumas pessoas estavam ensanguentadas, outras estavam mortas. Apreensivos, subiram imediatamente para a cabine do capitão a fim de ver os outros barcos.
Ao chegar no ponto de observação identificaram destroços das outras naus espalhados no mar; corpos boiavam, mantimentos e alguns animais também boiavam, cerca de quatro naus e uma caravelas desapareceram restando somente os seus destroços. Entremente, Francisca percebeu que os filhos tinham saído e chamou a atenção de João para a ausência deles. Imediatamente foram em busca da prole e os trouxeram para locais mais seguro.
Passaram-se vinte dias desde a última tempestade. João e Francisca sempre atentos tentavam manter seus filhos longe dos camundongos de olhos miúdos. O velho Mirque, cada vez mais cansado, tinha dificuldade em procurar seu próprio alimento, mas não se dava por vencido. Arrastava-se com toda sua experiência por áreas predeterminadas que foram localizadas pelos seus olheiros treinados por ele.
Os dias na nau se arrastavam, a monotonia tornava os tripulantes agressivos uns com os outros. Conflitos, brigas mortais e discórdias ocorriam tanto quanto os dias de viagem se alongavam. A escassez de alimento já era uma realidade monstruosa, as doenças começavam a tomar conta de toda frota. Sobreviver já se tornava uma questão de honra.
Neste ínterim, na vida dos insetos e dos animais irracionais, os eventos tinham outra conotação: as ratazanas somaram-se aos camundongos de olhos miúdos na caça às baratas, as fissuras e orifícios, pelos quais as baratas escapavam dos ataques dos roedores, quase todas já tinham sido arrombadas pelo incansável roedor assassino de olhos miúdos.
Tudo ficava mais difícil. O filho e o neto de Mirque eram quem ficava encarregados de encontrar os escassos locais para se esconder dos assassinos, além de identificarem os restos de alimentos que ainda estavam espalhados pela nau.
No trigésimo dia, saindo da casa de Mirque para localização de novas fissuras, o neto do ancião foi devorado por um camundongo, e o filho teve sua cabeça decepada por uma patada da ratazana órfã, seus pais foram devorados por humanos. Como o alimento estava escasso, a estratégica dos roedores mudou para a prática da paciência, localizar as vítimas e esperar o momento certo para atacar. Os dois assassinos ficaram na tocaia desde o dia anterior.
Todo o ataque foi presenciado pelo ancião, por sorte ele não foi pego também. Uma empatia tomou de conta dos demais sobreviventes e amigos de Mirque quando perceberam a profunda tristeza que caiu sobre o velho. Ele não tinha mais descendentes, estava sozinho, rodeado de tantas outras baratas as quais ele havia ajudado a sobreviver. Se a sobrevivência era dolorida de mais para Mirque, assim como para as demais baratas e animais, para os tripulantes não era diferente.
Na tarde do trigésimo oitavo dia, a fome já maltratava a sanidade dos tripulantes, cada vez mais os ratos eram opção alimentar. Cada ratazana valia o olho da cara, os camundongos de olhos miúdos agora eram caçados para serem comidos. Todas as baratas da nau festejaram a caça aos ratos. Fizeram festa e beberam do vinho no qual gotejava dos poucos barris que ainda restavam, a comemoração foi como vingança porque os dois assassinos do filho Mique tinham sido devorados pelos humanos.
Embora boa parte dos assassinos das baratas tivessem sumido, ainda havia outros escondidos. Com a escassez de alimento, aumentaram-se o fluxo de humanos, animais e insetos em busca de algo para comer. A família Barata fazia o que podia a fim de conseguir o mínimo de comida: até tripulantes mortos por doenças, com feridas no corpo ou sangramentos nas gengivas eram opção de alimento para a família Barata. Ferdinando e Chiquinha faziam reconhecimento de área para identificar algum morto que estava sangrando, além de fazer busca onde havia fezes e vômitos. Nesta busca, ao subir para o convés, Chiquinha percebeu grande movimentação, alguns tripulantes apontavam para cima.
Ela olhou para cima e viu grande escuridão no céu em plena tarde. Lembrou-se novamente dos avisos de Mirque: “nuvens escuras e densas são sinais de forte tempestade”. Em pouco minuto toda aquela escuridão desabou em forma d’água. Novamente o alvoroço retornou, agora com muita intensidade. Ferdinando viu uma violenta e rápida luz brilhante vinda do céu ao qual ofuscou seus pequenos olhos; na sequência ouviu-se várias explosões. A intensa luz havia atingido o depósito de munição e destruiu a popa e boa parte da nau.
Quando Ferdinando conseguiu ver com nitidez ele estava de barriga para cima e embaixo de uma grande ratazana morta em chamas. Ele sentia um calor intenso vindo da chama colorida que devorava o animal. Assustado, usava as antenas para identificar o ambiente, sentiu que Chiquinha estava sobre a metade de um barriu de água que flutuava bem próximo onde estava Ferdinando.
Conseguiam sentir a presença dos seus pais, mas algo estava errado, as sensações estavam muito fracas, o cheiro dos seus corpos não estava normal, parecia ter diminuído. Ferdinando, ao conseguir se livrar do peso da ratazana, pois a parte do barco onde ele estava havia inclinado e levado os dois a água, nadou com dificuldade até o barril onde estava a sua irmã. De lá, eles notaram que as vibrações da presença de seus pais não eram mais perceptíveis.
Possivelmente haviam morrido do impacto da explosão ou arrastados para o fundo do mar pelos destroços do porão. Os irmãos agora estavam órfãos, ao lado deles havia pedações de seres humanos, ratos e muitas baratas. Algumas delas estavam vivas, por enquanto, pois todas estavam mutiladas: ou estavam sem patas com parte do corpo queimado, ou sem os cercis e antenas, e ainda com abdomens cortados ou sem cabeças. Dali, onde estavam conseguiram identificar o corpo de Mirque preso a uma das fissuras do mastro quebrado, coberto de pólvora queimada. Mirque estava negro, havia sido torrado vivo.
Sem entender o porquê estavam sãs e salvos da tragédia, angustiados, com muito medo e muitas dúvidas, agora sozinhos, eles olhavam as outras embarcações seguirem seus rumos em mar aberto, com nuvens ainda mais escuras a diante. Lembraram da frase de Mirque: “espero que durem”, e decidiram que era isso que iriam também fazer, era isso que seus pais queriam, durar até quando for possível neste mundo de águas perigosas e mares vingativos.