
Saídos de um casebre abandonado nas imediações do Porto do Restelo, a família Barata, composta por quatro insetos: João Barata, Francisca Barata, Ferdinando Barata e Chiquinha Barata, saíam nas noites para se alimentar. João Barata e sua companheira, Francisca Barata, na empreitada noturna, ensinavam aos filhos, Ferdinando e Chiquinha, a escolherem os locais, os horários e os tipos de alimentos apropriados.
Tinham que ter cuidado com os inimigos: as lagartixas, as formigas, os camundongos e os escorpiões. João sempre saía na frente, com seu cerci na traseira fazendo o reconhecimento de área, em seguida vinham Ferdinando, Chiquinha e Francisca. Era tarde da noite, ainda se ouviam barulhos de humanos saindo e chegando ao porto, além de uma grande quantidade de ratazanas a procura de alimentos circulando por toda área. A noite estava fria, um convite para ficar na toca, mas era necessário sair para se alimentar.
A família deixara o local de proteção e seguia pelo chão. Ferdinando — de espírito aventureiro, antenas dianteiras brilhosas e vigorosas, pernas traseiras mais alongadas, com pelos e asas em processo de transformação, estilo inseto esportista, tinha passado pelo processo de muda recentemente — ao cruzar o cais do porto até chegar a um depósito de peixe e frutas olhava atentamente para as embarcações. Sua mãe sempre lhe dava pequenos empurrões para que ele não se detivesse; ela sabia que o porto era muito perigoso. Poderiam ser atacados pelos inimigos ou mesmo serem pisoteados pelos humanos.
João, inseto de meia idade, experiente nas expedições por alimentos, excessivamente prudente, eixo esqueleto robusto, marcado por ranhuras e asas perfuradas, olhava para trás a cada barulho estranho que ouvia, algumas vezes percebia que Ferdinando se distraia muito ao acompanhar a chegada e saída das embarcações. João, atento as distrações do filho, dizia:
— Você ainda irá morrer pisado ou atacado ao se distrair com as embarcações.
— Quando o senhor vai nos levar para passear em um deles, pai? perguntou Ferdinando.
Toda vez que Ferdinando perguntava, quase sempre a mesma pergunta, João repetia a mesma ladainha.
— Oh, filho! Logo, logo iremos realizar seu sonho!
De tanto ouvir sem nada conseguir, Ferdinando completou:
— Vamos amanhã, pai. É meu aniversário.
Francisca, assumindo quase sempre a intermediadora quando as conversas entre pai e filhos chegavam a algum empasse — era alguns dias mais nova do que João, resistente as grandes emoções, barata resolvida, de instinto altivo, eixo esqueleto forte, mas com pelos mais finos e flexíveis e com antenas dianteira menores — chegando mais próximo de João, e que tanto queria dar o melhor possível para os filhos, replicou em sussurros como quem sentia a angústia da espera por algo tão desejado e que nunca chegava:
— João, vamos dar a este menino o passeio de barco, pois há muito tempo que ele pede e você nunca atende, sempre fazendo promessas que nunca foram cumpridas.
— Francisca, estes barcos viajam para longe. Demoram meses para voltarem. Eles viajam para mundos desconhecidos. Eu já ouvi do velho Chico de Doquinha, nosso conhecido dos esgotos do porto, contar histórias de monstros gigantes que têm no mar nos quais comem até humanos. Se a gente entrar em um desses barcos e eles forem para longe, é possível que a gente não sobreviva para voltarmos a nossa casinha aqui.
— A gente sobrevive em qualquer lugar, nossos ancestrais provaram isso. A esposa de Chico de Doquinha, Clotilde, me contou que nestes barcos têm bastante comida, é quente, escuro e húmido, muito melhor do que nosso casebre que, nesta época do ano, é muito frio — disse Francisca.
Chiquinha, atenta aos sussurros da mãe, também de espírito aventureira, com a mesma idade do irmão, eixo esqueleto completo, pernas traseiras mais sensíveis e menos fortes, de temperamento afoito, muito curiosa e corajosa, disse:
— Vamos, pai! O senhor nos deve isto.
Dez dias depois, 9 de março de 1500, eles estavam dentro de um barco no qual sairia para longa viagem, embora tenham escolhido aquele barco específico, de tantos outros que estavam no cais para a saída, a família Barata não sabia o destino e o tempo de viagem. Estavam por entre as frestas do barco, tentando escapar dos perigos de serem esmagados pelos tripulantes.
Da fresta do convés, João e Francisca, de antenas ativas, perceberam cheiro de comida que vinha logo abaixo de onde eles estavam. Chamaram Ferdinando e Chiquinha para descerem — ambos estavam a observar a intensa movimentação de humanos no convés —, pois o local onde estavam era de muito risco.
Ao descerem, chegaram a um segundo piso no qual havia sacos cheio de aromas agradáveis. Chiquinha, que tinha se desgarrado da pata da mãe, conseguia descer ainda mais abaixo, através um orifício de uma das tábuas. Chegara ao terceiro piso. Neste ambiente, havia sacos e barris de madeiras com aromas agradáveis. Ela voltou nas carreiras para avisar a seus pais. Desceram até o local.
Na descida, perceberam que, quanto mais baixo iam, mais o cheiro aumentava e mais úmido ficava o ambiente. Ali, onde estavam, era parte final do porão. Exatamente como havia descrito o velho Chico de Doquinha. “Sim. Foi exatamente como Clotilde havia falado a mim: escuro, quente, úmido e cheio de comida”, pensou Francisca.
Atento a tudo, João sentiu uma rápida sensação de movimento no ar em seu cerci, identificara que havia outros grupos de família de sua espécie, estavam aconchegados por de trás de vários barris, outros estavam pendurados no teto do porão e outros caminhavam para todos os lados em busca de alimentos. Por ter muita comida, outros inquilinos eram frequentes, por exemplo, os ratos e camundongos. Estes roedores eram também ameaças para a família Barata e seus semelhantes.
Em todo trajeto de decida, desde o convés até a parte mais baixa do porão, Ferdinando vinha com os olhos e antenas ativos, curioso pelo tamanho daquele negócio todo e pelo frenesi dos humanos e das excitantes presença do perigo. Para ele e Chiquinha, aquilo era algo de outro mundo das baratas. Algo a ser explorado. Já João e Francisca, mais precavidos, tinham que manter a atenção constante nos filhos, embora já tivessem passados pela muda, ainda eram muito afoitos e sem experiências.
Ao chegarem embaixo de um dos barris de vinho encontraram uma barata em idade avançada, estava sobre um pedaço roído de biscoito. O senil olhou languidamente para João e sua família. Num gesto lento e pesado deu as boas-vindas acrescentando:
— Espero que durem!
João, ao ouvir a forma descabida do senil disse:
— Por que o senhor está dizendo isso?
— Porque só os sortudos sobrevivem — falou o ancião.
— Então estou falando com um inseto sortudo, não é isso? O senhor nesta idade ainda está vivo.
— Espero que não queira chegar ao nível de minha sorte, pois passará por muitas tormentas. Aconselho, urgentemente, a voltarem para onde estavam antes de chegar a este barco — enfatizou o ancião com a cabeça contraída e com voz arrastada.
E é tão perigoso assim? Se for, desisto agora; não vou colocar minha família em apuros — completou João.
Assim que João terminou de falar, o barco iniciava a saída do porto. Neste momento o ancião completou:
— É flecha lançada.
Naquele instante Ferdinando e Chiquinha correram para a fresta que dava acesso ao convés. Subiram até a proa e viram grande extensão de água a sua frente. Desceram correndo quando perceberam um camundongo à espreita deles.
Com poucos dias de viagem a família Barata vinha percebendo que a vida a bordo não era fácil. A tensão sempre aumentava quando eles tentavam sair de sua casa — um pequeno orifício na madeira, vizinho a casa do ancião — em busca de comida. Antes de saírem para novas aventuras perigosas, agora em novo ambiente de morada, ouviram barulho na madeira, como se os camundongos estivessem roendo-a. De repente viram algo se aproximar por um pequeno orifício, uma espécie de túnel que dava acesso a uma fresta na qual se conectava com a casa deles, era o ancião. De fronte ao orifício pediu licença para entrar e foi logo puxando assunto.
— Vocês precisam conhecer um pouco o que é viajar em uma nau — disse com voz arrastada. Quanto mais longe for a viagem, mais difícil é sobreviver. Pelo que já sei, dos meus filhos e netos informantes, os quais ficam escondidos por de trás das paredes do barco coletando informações, esta viagem vai por mares nunca dantes navegados. Já participei de várias aventuras e a última por sorte não morri. Esta, me parece, não vai ser fácil também. Vamos para outro mundo, onde os monstros nos esperam.
Francisca, sentindo uma vibração tensa em seus pelos, interrompeu.
— Um momento. O senhor está nos assustando! Por qual motivo nos alerta de tais eventos? Acho que não é tão traumático assim, pois o senhor, já idoso, conseguiu até agora se manter vivo. Além do mais, não nos conhece, não sabe o que passamos antes de vir para este barco. Ah, lembro que não nos apresentamos. Creio que somos da mesma família, Blattaria. Meu nome é Francisca Barata, este aqui é meu companheiro, João Barata, e estes dois são Chiquinha Barata e Ferdinando Barata.
— Meu nome é Mirque Viador, toda a minha infância foi dentro de barcos e estaleiros, meu pai e minha mãe, ambos mortos, maldosamente esmagados, viviam dentro destes ambientes. Já viajei muito em caravelas e naus. Este barco no qual vocês estão é uma nau, há mais oito delas, três caravelas e uma naveta que talvez carreguem mais alimento e água. Vocês poderão ver todos em quatro pequenas frestas mal untadas que ficam na cabine do comandante.
Mirque contou todos os detalhes e alguns esconderijos no barco, conhecia-os como as palmas de suas patas. Ferdinando e Chiquinha estavam atentos as informações, assustados ainda com o barulho de roedores na parede de madeira próximo onde eles estavam.
— Este barulho é quase constante, são nossos inimigos mortais, eles também comem a gente; os humanos chamam de ratos-do-mato e nós chamamos de camundongos de olhos miúdos. Eles vivem nos nossos encalços. Quando eles estiverem rompendo a madeira, muito próximo de chegar a nós, mudamos de local. Se ficarem atentos a isso sempre escaparemos.
Mirque é um velho barata habituado a viagens, que vem sofrendo as consequências das suas escolhas — inseto de personalidade forte, eixo esqueleto manchado e cheio de ranhuras, asas com várias perfurações, alguns pelos nas pernas ausentes e pernas traseiras desgastadas. Ele conhecia as nuances de ser aventureiro nas embarcações. Havia escapado, como ele disse, por sorte, de várias desgraças. Mas sabia que um dia seria pego. Ninguém tem sorte ilimitada. No fim de tudo, o mar sempre sai vitorioso.