
“Homo sum; humani nil a me alienum puto.” [Eu] sou humano, nada do que é humano me é estranho.
(Terêncio. 185-159 A.E.C.)
“Pra quê estudar, se vou morrer?” (PARTE 1)
Em uma sala de aula os alunos, sob as normativas de exames, estavam com folhas sobre suas carteiras. Alguns tentavam decodificar símbolos, outros tentavam filar decodificação do companheiro mais próximo. O único som que reinava no ambiente era um intenso e ressoante “psiu!” que percorria a sala reivindicando silêncio mordaz. Lá fora, em um banco de fronte a sala de aula, estavam dois alunos conversando, os dois usavam fones de ouvido. Um deles era da sala na qual aplicava-se a avaliação. Ao observar aquele desgarrado, no qual as normativas escolares não surtiam efeito, acenei para ele. De pronto fiz-lhe a pergunta apropriada para o momento:
— Por que não entrou na sala para prestar prova?
O aluno parecia não ter entendido a pergunta. Retirou o fone de ouvido e respondeu com outra pergunta.
— Quê?
Fui obrigado a resumir, pois a garganta já não ajudava.
— Fazer a avaliação, agora.
Ele balançou a cabeça negativamente. Com sorriso brejeiro, disse:
— Pra quê estudar, se vou morrer?
Diante da frase inconscientemente profunda e filosófica do aluno, fui convidado a entrar em um mundo do improvável. Naquele instante, senti-me arrancado daquele espaço deliberadamente fechado e controlado (a sala) — onde o arbítrio, ainda que débil, surtia algum efeito —, fui jogado em um mundo caótico onde reina o absurdo. A frase, a despeito da simplicidade, carregava um certo caráter simbólico-imagético. Contudo, a proposição parecia não ter efeito na forma do pensar do aluno.
A sentença parecia mais uma maneira fanfarrona de expressão do pupilo, do que uma epígrafe de um jovem pensador. Acho que teve mais efeito em mim do que nele, não no sentido pedagógico e nem pela fanfarrice, mas no direcionamento das prioridades das minhas leituras. Já vinha lendo algo sobre o assunto; contudo, a partir deste fato cai de cabeça nas obras dos autores que discorriam acerca do tema.
Ah, já ia esquecendo, a título de informação: o aluno realmente não veio fazer a avaliação. E antes que alguém me pergunte: ele passou de ano. Ocorreram outras avaliações e ele veio fazer todas.
Ademais, a frase — a despeito de ter sido proferida por um aluno do ensino médio, que até então não detinha conhecimento teórico suficientemente amplo da abordagem psicológica (a dimensão humana interior) e filosófica (dimensão ainda mais ampla, de difícil conceituação, que abarca a psicologia) — traz em si algo bastante complexo.
Soube depois que a fala do aluno não tinha préstimo como algo pensado com esmo; porém, naquele momento em que ele se expressava, trazendo algo muito complexo, considerei que o aluno utilizava-se de subterfúgio muito mais difícil (requer saber usar vários recursos cognitivo) para justificar a ausência no exame do que se dispor a participar. Se ele tivesse plena consciência do que tinha dito, saberia que entrara em areia movediças; posto que, como dizia Albert Camus, na obra O mito de Sísifo: “Começar a pensar é começar a ser atormentado”.
Em razão da frase pronunciada (considerando que tenha sido realmente pensada pelo aluno, ou ainda, que ele ouviu de alguém, entendeu e a reproduziu) o aluno passava a informação de que se dispunha a pensar, reaprender a ver de um outro ângulo; ou como se diz atualmente: “pensar fora da caixinha”. Todavia, para chegar a este ponto, de um pensamento mais apurado, de ideias mais profundas acerca de alguns dilemas humanos, o aluno necessitaria de ter vivido mais, a fim de adquirir mais experiência.
Mersault, personagem da obra A morte feliz, de Camus, acreditava que “é preciso tempo para viver. Como toda obra de arte, a vida exige que se pense nela”. Desta forma, se naquele momento eu tivesse um pouco mais de tempo, se não tivesse que aplicar avaliação naquele instante, ou pedisse a um outro professor para que pudesse-me substituir naquela tarefa, eu convidaria aquele aluno para sentar um pouco comigo e trocamos algumas ideias sobre a frase que ele proferiu.
Começaria com a seguinte pergunta: Até onde você gostaria de pensar sobre o que disse? Então, com essa pergunta o convidaria para entrar nas tormentas, e juntos poderíamos pensar sobre o absurdo da existência. Claro, antes eu iria fazer outra pergunta sobre o tema “morte” para saber se era algo desconfortável para ele. Embora seja um tema complexo e ainda muito enigmático, é fonte de muitas pesquisas e misticismo.
Após as perguntas iniciais sobre o “deixar de existir”, entraria com outra pergunta para situá-lo no caminho a ser percorrido nas discussões: Qual a finalidade de fazermos tudo o que fazemos na vida, mesmo tendo a certeza de que iremos morrer? Será que a busca por um objetivo pessoal na vida é absurda? Será que viver é absurdo? Nossa vida começa e termina com perguntas não respondidas, entre estas temos: Quem sou eu? De onde eu vim? Para onde vou? Estas três perguntas seculares nos atormentam, são a base de análise do sentido da vida.
Talvez estas perguntas deixariam ele ainda mais confuso. Então, para diminuir a confusão traria um conceito bem comum sobre o absurdo. Diria que o absurdo é um conflito de tendências humanas que busca sentido para a vida, mas que não dispõe de aptidões para encontrá-la.
Falar (escrever) sobre isto requer extensa pesquisa para se chegar a uma tese, ainda que ela não abarque tudo, posto que não seja possível. É muito provável que extensa pesquisa sobre o tema, mesmo dedicando-se a vida inteira ao entendimento do assunto, chega-se, ao máximo, em uma nova tese parida das entranhas de uma síntese, após passar por sofridas antíteses.
Muita coisa ainda é mistério, está no campo do improvável, mas não quer dizer que é impossível cogitar sobre. Cogito, ergo sum — nas palavras de Descarte; ou, ainda, o homem é um animal racional — enunciou Aristóteles. Se temos esta possibilidade natural, não temos nada a temer. Viver é também estar em desconforto. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem — discorreu Guimarães Rosa. Temos muito a transformar e, concomitantemente, sermos transformados pela consciência da nossa trágica e encantadora vida.
Mas de onde vieram estas ideias? Por que somente agora este assunto está mais explícito? Eis aí uma boa pergunta. Mas discutiremos um pouco sobre isso na próxima postagem. ACESSE AQUI