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Três anos depois eles se casaram. Haviam feito economias, financiaram uma casa em um conjunto habitacional, num bairro distante de onde trabalhavam. Jeremias ainda prestava serviços para a biblioteca municipal e Maria Julia era professora de artes e de dança numa escola particular. Ambos trabalhavam o dia todo e só se encontravam em casa, quando o expediente de trabalho daquele dia tinha encerrado.
Em casa, ambos se reversavam nos afazeres: um, varria e tirava o pó dos poucos cômodos; o outro, preparava o jantar daquela noite e o almoço do dia seguinte. A conversa entre eles neste momento de serviços caseiros eram coisas triviais: às vezes era sobre os aumentos dos preços do gás de cozinha, das passagens de transportes, sobre a jornada de trabalho daquele dia e tantas outras coisas de uma vida de casado. Terminado os afazeres, Jeremias assistia aos jornais na TV, e Maria Julia preparava aulas para o dia seguinte. Por volta das 20h30 eles se sentavam no sofá, agora com mais tempo para conversas mais importantes. Naquela noite de verão quente, com uma brisa entrando pela área de ventilação de um pequeno jardim de mini cactos, eles completavam dois anos de casados.
— Eu já lhe disse que você foi quem me devolveu a esperança?
Ela sorriu, simpaticamente, olhando nos olhos dele e falou:
— Sim, Jeremias. Uma vez a cada duas semanas você me diz isso, — ela sorriu mais uma vez, um sorriso de agradecimento por saber que ele não esquecia o quanto o relacionamento tinha algo de gratidão e amor. — E continuou a falar: — acho que sentimos juntos a mesma sensação; claro, com maneiras diferentes em demonstrarmos, com intensidades praticamente iguais. Parte das nossas experiências de vida não foram boas, por isto que encontramos no outro algo para nos sustentar.
— É verdade — disse ele olhando e pegando a mão direita de Maria Julia. — Lembro-me muito bem quando a vi na seção de livros, fiquei sem ar por alguns segundos, e quando apertei suas mãos senti calafrios, minhas mãos umedeceram. Também senti quase a mesma coisa quando a vi dançando naquele teatro alguns meses antes do nosso encontro.
— Naquele dia em que nos conhecemos, — disse Maria Julia ao retirar a sua mão que estava por cima da mão direita dele e a colocá-la no rosto de Jeremias. Sentindo o rosto quente e úmido como a mão dele, considerou ser o calor da paixão, no qual ainda estava vivo a despeito do tempo que tudo apaga. Olhou em seus olhos e completou — embora nossas sensações e atitudes, no momento que nos vimos pela primeira vez, tenham sido superficialmente diferentes, foi para mim muito intenso e estranho, já lhe contei isto. Também contei que, ao ver você, senti que seu olhar era de muita surpresa; fiquei a me perguntar por quê. Mas o que mais me chamou atenção, e vou dizer novamente para que a gente não perca isto de vista, foi a sua atitude receptiva e os olhos de quem buscava algo e que, naquele instante, tinha achado. Senti como se eu fosse aquele algo que você procurava há muito tempo, e ao mesmo tempo, senti que teria que corresponder com este sentimento; justamente por perceber, em mim e em você, tamanha força atrativa. Foi algo muito rápido, deu tempo para que eu pudesse disfarçar e demonstrar outra atitude para com você naquele momento. Contudo, sabia que não poderia deixar passar aquela sensação, e que teria de dar um jeito para que pudéssemos nos encontrar outras vezes. Creio que não é necessário contar mais o que ocorreu, você sabe muito bem o que fizemos para manter nossas conversas… — disse Maria Julia sorrindo e inclinando-se para beijar Jeremias no rosto.
Juntos em seu leito paradisíaco, encontravam-se num estado de harmonia conjugal, embora cansados da labuta e dos serviços caseiros, aquela noite foi de conversas e regozijos como namorados recentes. Como se tivessem sido atingidos pelas flechas de Eros, o romance imortalizava-se nos corpos fugazes das duas criaturas. Depois das trocas de carinhos, eles voltavam aos hábitos dos mortais: ligavam a TV, assistiam filmes juntos até o sono chegar. Ambos pareciam ser o complemento do outro, ambos tiveram momentos difíceis, e pareciam saber como amenizar o sofrimento do outro com conversas e desejos ocultos.
Em todas as noites que tinha para conversar eles evitavam falar dos pontos mais críticos da vida. Sempre evitavam tocar no assunto, embora já tivessem dito tudo que deveriam dizer um para o outro — De todas as experiências ruins que cada um teve, a de Maria Julia foi a mais traumática. Ela teve um relacionamento abusivo, tinha sido violentada sexualmente pelo seu ex-namorado:
Maria Julia tinha relutado por muito tempo em falar sobre o seu relacionamento abusivo quando eles conversavam na biblioteca. Somente quando faltava um ano para o casamento, ou seja, um dia antes de noivar, foi que Maria Julia contou a Jeremias que o relacionamento dela com seu ex-namorado não tinha sido sadio.
Contou todos os detalhes enquanto ele ficava assustado com tamanha enrascada que ela havia se metido. Ela disse que tinha sido refém do seu ex-namorado, pois era um cara violento e engajado na máfia do bairro. Disse a Jeremias que só soube disso quando tinha visto o ex-namorado nas páginas policiais de um jornal da cidade por participação em um assassinato. Ela contou ainda que tinha tentado várias vezes deixá-lo, mas ele a ameaçava. Jurou de fazer algo com os pais e as irmãs dela, e ela seria a última a pagar o preço por abandoná-lo. Prometeu deixá-la somente quando ela lhe desse um filho.
Durante um ano ele a usou, fez o que queria, mas não conseguiu engravidá-la. Vivia desconfiado que ela estivesse fazendo uso de comprimidos para não engravidar. Sempre a lembrava em cada transa: “Se você estiver usando comprimido para evitar a gravidez, será minha escrava e prostituta por muito tempo”. Dias depois ela soube que ele fazia parte de uma gangue que foi presa por assassinato também de crianças em rituais macabros.
Quando Maria Julia viu no jornal a foto dele preso, ela teve reações opostas: de pânico quando imaginava que estava se relacionando com um psicopata; e de alegria, por saber que este era o momento de ela escapar das garras do assassino. Ainda assustada, criou coragem e foi contar aos pais. Eles sabiam do relacionamento, mas não sabiam do ocorrido. Toda a gangue ficou em prisão preventiva até o julgamento. Ele foi julgado e pegou 35 anos de prisão em regime fechado. Dois meses depois ela, suas irmãs e seus pais tiveram que deixar, a duras penas, a cidade por medida de segurança.
Passado algum tempo, já em outra cidade, em período de festa natalina, Maria Julia com um mês de gravidez do relacionamento com Jeremias, planejara o jantar em família. Estavam à mesa: Maria Susana, de 25 anos, desquitada, mãe de Gregório, de 16 anos; Maria Raquel, de 23 anos, solteira; Simão Lindolfo, que havia completado 68 anos e Lídia Maria, com quase 63 anos, ambos os pais de Maria Julia.
Da família de Jeremias não havia ninguém a quem chamar, ele era filho único e seus tios moravam em São Paulo. Os únicos familiares, por parte dos pais de Jeremias, e que moravam na mesma cidade que ele, eram alguns primos de segundo grau. Estes não foram convidados.
Dessa forma somente vieram os pais e as irmãs de Maria Julia; mesmo assim, a noite foi agradável, com muitas conversas e promessas de estarem juntas no próximo jantar do Natal com o bebê.
O encontro foi tão prazeroso que se repetiu na festa de réveillon. No jantar de fim de ano, agora regrado do champanhe e comida tradicional desta época, as alegrias corriam soltas. Jeremias e Maria Julia tinham mil e um planejamento: o bebê no ventre trouxe mais amor ao casal e irradiou em todos ao redor. Tudo era belo como num sol de primavera nos campos de girassóis.
A noite estrelada daquele fim e começo de ano competia com a luz da rua onde o casal morava. Show de estrelas artificias explodiam simbolizando um novo Big Bang, o novo começo. Promessas se renovavam, ocultando outras dos anos anteriores que não foram cumpridas por algum motivo. Se existia sofrimento, naquele momento, ele não estava; e se estava, ficou calado, humilhado pela renovação simbólica criada justamente para que pudessem acreditar que a felicidade é possível, embora efêmera.
Na casa do casal, a despeito de poucas pessoas, o burburinho era grande. Todos se abraçavam ao som da música tradicional de fim de ano do grupo Os Incríveis. Naquele clima de festa veio novamente o reforço da promessa para o ano vindouro.
As irmãs de Maria Julia apontaram as taças contendo vinho especial na direção da barriga de Maria Julia, que estava ao lado delas, e seus pais e esposo em unissonantes disseram: “Bem-vindo ao novo ano”. Maria Julia, sorrindo e com olhos lacrimejantes, colocou a mão sobre seu ventre, olhando com ternura, refez a frase: “Bem-vindo, meu bebê”.
Os meses seguintes foram de exames e preparativos para a chegada da menina, além de outras preocupações: no Brasil ocorria o primeiro caso de Covid-19, um mês depois ocorreram as primeiras mortes; infectologistas já afirmavam sobre a necessidade de cuidados sanitários contra o vírus; o presidente dizia que o vírus causava uma gripezinha; a Organização Mundial da Saúde alertava para maiores problemas, caso não seja levado a sério o vírus.
A população estava dividida nas opiniões sobre os riscos, as informações eram insuficientes sobre a forma de contágio e a atividade do vírus no corpo humano. Os desencontros de informações levaram a Maria Julia diminuir a ida para exames pré-natal, ainda não havia vacina e ela estava grávida, tinha medo de ser contaminada. Os casos de contaminação aumentaram, locais públicos foram fechados.
Jeremias foi avisado que ele receberia metade do salário para que ficasse em casa; dois meses depois a empresa deixou de pagar o salário a Jeremias e a outros funcionários, alegava que não teria como manter todos os empregados recebendo sem trabalhar. Maria Julia já tinha parado as aulas, mas a escola a qual ela trabalhava garantia o pagamento do salário desde que houvesse redução de 30% do salário dela.
As aulas de dança já tinham sido suspensas por conta da gravidez de Maria Julia. Nestes períodos Maria Julia e Jeremias tiveram mais tempo juntos, seus pais e as duas irmãs sempre visitavam o casal nos finais de semana. Todos estavam apreensivos sobre as notícias trágicas de morte por Covid-19 e a forma como os entes queridos eram enterrados.
Contudo, o casal ainda tinha o alimento da alegria, a menina que em breve viria ao mundo. Maria Julia estava com um barrigão e alegre, apesar dos medos e incertezas que a pandemia havia trazido.
Mas a lei de Murphy, que diz: nada está tão ruim que não possa piorar, chegou na família de Jeremias. Em uma noite dessas, Maria Julia se encontrava no hospital de urgência e emergência com fortes dores de cabeças, vista turvada, náuseas e vômitos. Estavam com ela no hospital Maria Susana e Jeremias, este estava muito nervoso, achava que ela tivesse sido infectada pelo vírus da Covid-19.
Dois médicos que estavam de plantão fizeram os primeiros atendimentos. Maria Julia estava consciente, deitada em uma maca e ainda sentindo dores. Alguns minutos depois eles receberam a notícia de que Maria Julia teria que ser internada urgentemente. Após os procedimentos burocráticos ela foi encaminhada às pressas para exames.
Antes de Maria Julia entrar na internação ela virou a cabeça para o lado direito da maca e viu Jeremias ao seu lado, olhou para ele com a mesma ternura de sempre, com os olhos cheios de lágrimas, disse:
— Não se preocupe tanto, vai dar tudo certo, mando notícia.
Naquele instante a porta de acesso as áreas restritas do hospital estava se fechando, antes que perdesse de vista a sua amada, Jeremias conseguiu ver aquele ser tão especial sendo carregada em uma maca. Em seguida, somente uma massa branca metálica encobria a sua visão com uma frase graúda em vermelho forte: “Não entre sem autorização”.
Ele se manteve por alguns segundos diante da porta fechada. Não acreditava que aquilo tudo estivesse acontecendo com Maria Julia. A sua fragilidade naquele instante alimentava a melancolia que já andava à espreita, lagrimas rolavam pelo seu rosto, carregavam seu alento para longe daquela massa corporal à deriva. Antes mesmo que conseguisse sair daquela paralisação diante da porta fechada, a enfermeira aproximou-se dele e o chamou para conversar em uma sala vizinha. Jeremias enxugou as lágrimas, virou-se para a enfermeira e acompanhou-a até uma sala.
Foi aí que ele soube o que estava ocorrendo, a enfermeira contou que Maria Julia estava com eclampsia e o caso dela era grave, mas que todos os procedimentos para combater os males estão sendo feitos; informou ainda que por conta da pandemia da Covid-19 ele não poderia ficar ali e nem ver a sua esposa.
Todos os procedimentos de visitas iam ser virtuais. Amanhã à tarde a gente enviará um vídeo ou faremos uma ligação via WhatsApp. Jeremias informou que tinha celular, mas não tinha acesso à internet. A enfermeira comunicou que passaria o vídeo gravado para a irmã de Maria Julia, e ela repassaria para ele. Jeremias agradeceu e pediu a enfermeira que ela fizesse o que fosse possível para que tudo saísse bem. A enfermeira disse que o que estivesse ao alcance da equipe poderia ter certeza de que ela e a criança sairiam bem, mas deixou bem claro a Jeremias:
— Toda uma equipe está agora fazendo diversos exames e acompanhamento, não podemos dizer nada mais substancial no momento, mas de modo geral o caso dela merece muita atenção.
Jeremias agradeceu o empenho da equipe e saiu da sala ainda com muita preocupação. Sabia que Maria Susana estava por perto, contudo, assim como ele, ela não tinha acesso direto a Maria Julia. Ainda no hospital, já no lado de fora, ele se sentou em um banco de concreto, o banco era largo e comprido o suficiente para deitar-se, sentiu a frieza daquele objeto inanimado e cochilou.
Quinze minutos depois acordou com o celular tocando, era Maria Susana. Ela informou que estava em uma sala a espera de mais informação sobre o estado de Maria Julia. Maria Susana explicou que a última notícia que tinha dela era que estava em uma sala consciente, agora com menos dores. Disse também que a próxima notícia sairia amanhã.
Após falar com Maria Susana, Jeremias conferiu a hora no celular, passavam das 21h. Inclinou-se sobre o banco, estendeu as pernas, e usando as mãos como travesseiro, ficou lá quieto, sentindo sua inutilidade diante das incertezas; embora muito pessimista ele ainda acreditava que tudo voltaria ao normal: “Eu, Maria Julia e nossa filinha iremos voltar para casa, no mais tardar, amanhã”, pensou angustiado.
Exatamente às 2h da manhã ele acorda com dores na coluna cervical. Procurou em um dos bolsos um comprimido para dor — ele sempre andava com alguns comprimidos para dores por conta do problema na coluna — foi a um barraquinho mais próximo e pediu um pouco de água para tomar o remédio.
Volta para o banco onde estava e se senta de frente para a entrada do hospital. Pensou em pedir pelo amor de Deus que liberassem para ver a esposa; contudo, desistiu da ideia, sabia que o pedido não seria atendido mesmo se incluísse o amor de Deus. Jeremias achou também que nem Ele queria saber dele. Mas depois lembrou que tinha investido muito tempo da sua vida em favor da obra Dele e teria que ter, pelo menos nesta vez, algum retorno. Resolveu contatá-lo em Sua casa sagrada. Colocou a mão no outro bolso, puxou uma nota de cinco reais, chamou um moto taxista e dirigiu-se a praça da igreja de Santo Expedito.
Bem ali, um corpo no banco da praça; e em certo momento, a mente errante. Um conjunto disjunto, uma única parte dividida em duas partes que teimavam consigo mesmo: um corpo cansado e sentado; a mente ativa, e em pé, querendo sair. Querendo voltar ao hospital de ontem anoite. Embora soubesse que se voltasse ao hospital e pedisse, mais uma vez, a enfermeira chefe para ficar junto da esposa, era quase certo que receberia um NÃO.
Queria tentar. Uma força estranha o sugava para lá. Contudo, depois de queimar as pestanas de tanto pensar, decidiu não ir. Se a tentativa não surtisse efeito teria que ficar naquele local desconfortável, e voltaria a sentir dores na coluna; além do mais, não tinha dinheiro suficiente para ir até ao hospital. Resolveu esperar a ligação de Maria Susana.
Diante de vários impasses a cabeça não parava: queria estar lá com ela, mas as probabilidades circunstanciais pediam para que ficasse ali na praça ou fosse para casa. As incertezas afloravam a cada instante, o medo da impotência diante da realidade era maior do que as crenças alimentadas desde criança. O desassossego mental voltava à tona.
A mente, em meio à pandemia, tolhida do visual e impaciente, criava um ambiente hediondo: lá estava ela deitada com o barrigão voltado para cima, em um lugar diferente da sua casa, num mundo gelado, onde até a alma usava capa de proteção contra o frio. Estava desacordada, cercada por máquinas, cabos, tudo e mangueiras, abandonada à própria sorte, valendo-se de objetos inanimados para trazerem a sua anima. E quanto a outra?
Sim… a outra, sangue do meu sangue, semente real de um amor verdadeiro, tão inocente, que ainda não havia nascida para este mundo de sortilégio, esperava o passaporte da viagem para o exterior. Em quanto não recebia o passe ela ficava lá, em outro mundo, dentro de outro mundo que sofre as pressões da existência. Mergulhada em uma bolha, receptivo a estímulos, possivelmente sentirá a mão pesada cujos efeitos reverberarão em sua psique.
Colhido pelo redemoinho das sensações mentais, ele se volta para um passado glorioso, um hiato de regozijo. Sentia frio na espinha, embora os raios de sol daquela manhã quente delineavam silhueta de um corpo dividido em diagonal, onde a cabeça ainda estava nas sombras. Ainda sem se alimentar e quase sem dinheiro, o único tostão que tinha no bolso era uma nota de um real, sentia o amargo na boca, sentia a garganta seca e o incômodo na coluna voltava. O relógio da igreja registrava 14h30, faltava trinta minutos para a visita virtual. Jeremias estava segurando o telefone, esperando uma ligação de Maria Susana.
Era chegado a hora, repiques de sons de sinos, saídos de um alto-falante da igreja, soavam 15h. Jeremias sentia calafrio, agarrado ao celular, de olho vidrado no monitor, esperava uma ligação a qualquer momento. Cada segundo parecia minutos, e cada minuto demorava horas para passar. Conferia o tempo a cada instante, e naquele momento o mostrador do relógio marcava 15h30. Ele sabia que o tempo das visitas, em modo virtual, era de no máximo uma hora. Ficou criando imagens mentais tanto de bons augúrios quanto de maus augúrios.
Ele era todo desassossego: pupilas dilatadas, suor frio, mãos húmidas, movimentos excessivos das pernas e respiração curta. Os sintomas intensificaram quando o relógio marcou 16h, era o fim das visitas virtuais e nada foi informado a ele até aquele momento. Pensou em pedir emprestado o telefone de alguém para ligar. Às 16h10 Maria Susana liga para Jeremias, com voz um pouco tremida perguntou onde ele estava, e ele informou que estava na praça defronte à igreja. Ela disse que iria pegá-lo em alguns minutos, disse que a criança estava bem e falou que informaria tudo quando chegasse aí.
Jeremias sentiu o gosto da felicidade em saber que a criança, o amor em pessoa, veio ao mundo trazer renovação. Pela primeira vez sentia o poder da multiplicidade, da continuidade: a força que o torna pai, que um dia será avô e talvez bisavô; a alegria eminente portadora da esperança ante aos dissabores do viver; a dádiva da vida que planeia os desníveis da mortalidade. Um forte êxtase o protegeu por alguns segundos das desavenças internas; contudo, uma carga de medo e angústia entrou no palco da mente apresentando-se como possibilidade, abaixou a cabeça e a apoiou entre as duas mãos, o caos voltava à tona:
“alguma coisa grave havia ocorrido com Maria Julia, já que Maria Susana somente falou sobre a criança”. Dentro da sua cabeça tsunami de pensamentos percutiam as estruturas de racionais ainda intactas, colocavam à prova tudo o que ainda resistia. Todavia, parte destas estruturas racionais era bastante resistente, consolidadas pelo cimento da coragem e unidas ao ferro das incertezas habituais. Ele alimentava que tudo iria sair bem, já que Deus o conhecera desde criança quando trabalhava em nome dos céus.
Um ano depois, em um sábado à tarde, Jeremias brincava com Vitória Maria em sua casa. Maria Susana e Maria Raquel quase sempre passava na casa de Jeremias para dar assistência. Durante a semana Jeremias deixava Vitória Maria com os avós, ele tinha voltado a trabalhar na biblioteca. Tudo parecia voltar ao normal, exceto uma coisa mais importante, a ausência de Maria Julia.
Cada vez que batia a vontade de chorar, cada vez que o desassossego batia a sua porta, ele olhava para um papel que estava pregado em um quadro de vidro fixado na parede de sua casa. Era um bilhete, nele estava escrito:
Para Jeremias.
Tenho certeza de que nossa filha irá sobreviver, ela inicia a vida já batalhando pela vida; vai ser vitoriosa na vida, pois teve a coragem e a força para viver. Quanto a mim, não sei. Se eu sobreviver não veras esta mensagem. Se eu não estiver presente em forma, estarei em semente. Vitória Maria será nós todos, juntos. E quanto a você, no momento passará por provações, mas tenha certeza de que o tempo irá trazer-lhe sossego. A semente do nosso amor está na nossa filha. Cuide-se e cuide dela. Meus pais e minhas irmãs estarão ao seu lado; e você, ao lado deles.
Lembre-se da nossa conversa sobre o Epitáfio de Seikilos:
“Enquanto viveres, brilha. De todo não te aflijas, pois curta é a vida. E o tempo cobra seu tributo”.
Lembre-se das dicas de Zorbás:
“Os grandes visionários, também os grandes poetas tudo veem, como se fosse pela primeira vez. A cada manhã avistam diante de si um mundo novo. Aliás, não avistam um mundo novo, eles o criam”.
Obrigada por me trazer a paz em vida, e a paz do descanso eterno, na certeza de que serás um bom pai.
Te amo!
Assinado: Maria Julia.