Leia a parte I AQUI

QUERIA VISITAR A SUA ESPOSA NA UTI, MAS NÃO DEIXARAM. Alegaram que no período da pandemia da Covid-19 o hospital adotou protocolo de segurança sanitária e as visitas a pacientes estavam sendo virtuais. A visita virtual estava prevista para às 15hs daquele dia. Seu celular não disponha de plano com acesso à internet, tinha sido cortado e não tinha outro meio de acesso. Fazia cinco meses que estava desempregado, a biblioteca a qual trabalhava a três anos tinha fechado por conta da pandemia. Havia dito isto aos responsáveis daquele setor do hospital, contudo eles foram irredutíveis.

Quatorze horas havia passado desde quando teve contato com a esposa, antes mesmo de entrar na UTI, estava com saudades dela. Não conseguia entender aquilo que havia ocorrido. Passaram o fim de semana juntos e alegres, tudo estava bem. Faziam planos para quando a bebê viesse ao mundo, só estavam com receios de que ela viria em um momento em que o país estava passando por tempos difíceis.

O romance entre eles havia florescido quando em momento de tristeza por conta das várias perdas que tivera, a última foi a morte dos seus pais. O pai foi o primeiro a morrer, nove meses depois foi a vez da mãe. Sete meses depois da morte da sua mãe ele foi ao teatro assistir a um evento de cultura grega, era um grupo musical e danças gregas. Ele tinha um certo gosto pelas danças e cânticos de países antigos.

Ficou fascinado quando viu, entre tantas outras mulheres no palco, aquela morena de cabelos compridos, corpo retangular, iniciando o movimento com batidas de palmas, ao som de violões e bouzoukis; estalavam os dedos e movimentava-se em passos curtos para um lado e depois para o outro, em seguida veio a combinações de passos com giros para frente e para trás. No movimento seguinte elas levantavam e estendiam os braços nas laterais do corpo de modo a colocar as mãos nos ombros das outras que estavam ligeiramente ao seu lado.

O ritmo da música e os movimentos dos corpos aumentavam gradualmente, aceleravam da metade para o final e depois diminuíam. Os movimentos eram executados com sorrisos sutis nos lábios. Durante toda a coreografia ele mantinha os olhos concentrados naquela linda morena de semblante sorridente. A dança finda, e ele ainda mantinha a atenção naquela moça toda especial.

Ao fim do espetáculo ele tentou se aproximar dela, mas não conseguiu pois todo o grupo estava sendo entrevistado por uma emissora de rádio e TV da cidade. Um pouco apreensivo, olhou a hora; eram por volta das 22h30, precisava comprar algo para comer no quiosque do teatro antes que fechasse. Ainda ficou uns cinco minutos esperando que a entrevista terminasse para tentar uma conversa rápida com a garota, embora não soubesse o que iria dizer. Percebeu que se ficasse ali por mais tempo dormiria com fome, saiu às pressas para comprar o lanche e foi para a sua casa pensando nela.

No dia seguinte, ao ir para o trabalho, passou em frente ao teatro e viu no cartaz o nome da dança que a garota interpretava feliz da vida. Era uma coreografia popular grega a Sirtaki, também conhecida como a dança do Zorbás — tempos depois ela iria dizer a ele toda a história daquela coreografia, e como aqueles movimentos ficaram conhecidos no mundo todo por conta de algumas adaptações que a coreografia sofreu para entrar no cinema — “Precisava ler sobre a dança e ter alguma coisa para falar com aquela moça quando um dia for possível encontrar com ela, e o próximo evento é daqui a dois meses”, pensou olhando o cartaz.

Mas de imediato ficou conformado por não ter falado com ela ontem, logo depois do espetáculo; achava que não tinha uma boa aparência e nem saberia o que dizer, pontos importantes para a primeira aproximação. Precisava dar tempo ao tempo e encontrar uma outra forma.

Aquela vontade quase incontrolável em conhecer aquela morena de cabelos negros brilhantes se manteve por vários dias, e só teve oportunidade de falar com ela quando estava trabalhando. Era funcionário terceirizado da biblioteca pública daquela cidade, responsável por organizar os livros nas prateleiras. Havia três anos que trabalhava ali. Conhecia como ninguém os códigos de organização, aqueles números que ficam localizados nas lombadas dos livros, e sabia em qual parte da estante cada livro deveria estar.

Havia separado alguns livros e escolhidos sites para leituras sobre as danças gregas, aproveitaria o horário de almoço para pesquisar no computador da biblioteca. Durantes vários dias se dedicou ao conhecimento da cultura grega. Os dias corridos, com pouca hora de almoço, e as pesquisas o aliviaram do sofrimento da perda dos pais.

Em um daqueles dias de rara sorte, ao entrar no setor dos livros de código 700, depara com ela, a linda morena dos cabelos negros e sorriso angelical, tentando alcanças a prateleira P31/700. De súbito sentiu que suas mãos humedeceram, percebeu que não conseguia respirar direito, parecia ter recebido um soco no estômago. Com olhos vidrados nela, os dedos das mãos perderam força, deixou cair um dos livros que havia recolhido de uma das mesas. O barulho da queda do livro fez com que ela olhasse para ele.

— Olá! Bom dia. O senhor trabalha aqui?

Abaixando-se para pegar o livro, sem dizer nada, tentando ganhar tempo para a respiração voltar ao normal, disse:

— Olá! Sim, trabalho.

— Ótimo. Meu nome é Maria Julia, gostaria que o senhor me ajudasse a identificar alguns livros de artes gregas em uma destas estantes.

— Pois não, estou às suas ordens, disse com voz embaralhada. Ainda atônito da surpresa, sorriu de modo acanhado e disse:

— Meu nome é Jeremias Martins, sou eu quem organizo os livros nas estantes e sei de cor onde eles estão. Mostre-me o título que prefere.

— São estes aqui — mostrou na tela do seu celular as imagens das capas dos livros.

Eram sete livros, dos quais estava incluso o romance Vida e proezas de Aléxis Zorbás. Ela parecia conhecer os autores e os livros, falou sobre alguns autores com bastante informação e disse que estava ali para pesquisar; contudo, o livro de Nikos Kazantzákis era para releitura. Tinha amado o personagem Zorbás, por isso queria reler o livro. Jeremias ficou curioso em querer saber que livro era aquele e quantas páginas tinha — Ele sempre aproveitava a hora do almoço para ler trechos de romances.

Quase nunca terminava a leitura de livros que tivesse mais de cinquenta páginas, sempre passava para outro livro antes de concluí-lo. Ele dizia que não tinha paciência para ver tantas letrinhas, quando olhava demais para elas ficava com dor de cabeça.

Acostumou-se desde criança a ler livrinhos do catecismo, nos quais muitos não passavam de vinte páginas. Mas aqueles livros despertaram seu interesse de modo a fazê-lo esquecer da dor de cabeça e do excesso de letrinhas, posto que tinha lido muito sobre a cultura grega. Soube até que a Grécia antiga foi o berço da civilização ocidental — Jeremias pegou quase todos os livros que ela havia solicitado, estava em falta o romance.

Explicou a Maria Julia que em duas semanas garantiria que o romance estaria na biblioteca, pois o governo havia liberado a compra de mais obras e ele era um dos responsáveis por registrar os livros mais procurado que ainda não havia no acervo. Prometeu incluí-lo na compra. Parecia que ele estava mais entusiasmado para ver o livro do que ela. Ela agradeceu com um sorriso angelical e pediu para que indicasse uma mesa ideal para que pudesse espalhar todos aqueles livros sem perturbar os demais que estavam estuando nas outras mesas.

Como se tivesse recebido pedido de uma autoridade, ele atendeu as ordens de imediato. Levou-a uma salinha de estudos para pesquisa individuais, bem arejada, com janelas de vidro. Disse a ela que estaria a disposição caso quisesse mais alguma ajuda. Durante todo o dia Maria Julia esteve sentada fazendo anotações, tinha trazido um lanche na bolsa, e só fez duas interrupções na pesquisa, uma no almoço e a outra no fim da tarde. Jeremias sempre fazia um jeitinho para passar próximo a mesa dela, torcia para que fosse chamado para atender a um outro pedido dela. Mas Maria Julia não se manifestou.

Somente às 17h encerrou os trabalhos daquele dia. Ela acenou para Jeremias, que estava do outro lado da biblioteca recolhendo os livros em outra mesa, e quando ele viu o aceno soltou os livros novamente na mesa e foi às pressas ao encontro dela. Mais uma vez ele viu aquele sorriso angelical, o mesmo sorriso que percebera quando ela estava dançando no palco, entregue a música. Maria Julia estendeu a mão a Jeremias como forma de agradecimento e ele apertou-a delicadamente.

Maria Julia olhou para os olhos de Jeremias e agradeceu toda a ajuda que teve. Encantado com a simplicidade dela, de mãos delicadas e sorriso atraente, não percebeu que perguntava, de modo invasivo, quando ela voltaria ali. De repente percebeu o que dissera e tentou se corrigir, mas já era tarde, era flecha lançada. Maria Julia notou que Jeremias tinha ficado incomodado com a própria pergunta e o tranquilizou quando disse que voltaria mais vezes, possivelmente nas quintas e sextas, para dar continuidade aos trabalhos.

Maria Julia parecia bem à vontade para contar mais detalhes sobre o porquê daquele investimento de tempo. Falou que a pesquisa era para o grupo de dança e cântico na qual estava participando e que a cada seis meses fazia apresentação com temas diferentes. Disse também que prometeria tirar um tempinho, no horário do almoço, quando estivesse na biblioteca, para que eles conversassem um pouco e se conhecessem melhor.

Estas últimas palavras que ela pronunciou mexeu consideravelmente com o coração de Jeremias. Voltava a sentir a sensação de falta de ar, as mãos umedeceram novamente e a voz embaralhou-se ao tentar dizer que ficaria muito feliz por ajudá-la nas buscas dos livros e pela confiança em se dispor a conversar com ele.

O relógio antigo de parede da biblioteca já marcava 17h20, tinha somente quatro adolescente fazendo a pesquisa escolar, Jeremias sairia às 17h30.  Pensou em chamar Maria Julia para beber alguma coisa num restaurante do próximo quarteirão, contudo entendeu que era abusar demais da sorte em um só dia.

Daquele dia em diante ela passou a frequentar mais a biblioteca e sempre procurava por Jeremias para ajudá-la. A cada visita de estudos eles sempre conversavam antes de ela se sentar para leitura. Contou que assistiu uma das apresentações dela no teatro e que ficou encantado quando viu os movimentos com tanta destreza e concentração. Cada vez mais eles iam se entrosando, partilhando gostos, medos, alegrias, tristezas e tantas outras coisas que cada um carregava em suas experiências de vida. Maria Julia tinha 25 anos e Jeremias Martins já era um quarentão.

CONTINUA NA PARTE III – Próxima postagem. Aguarde!