
Sentado no banco da praça ele olhava os transeuntes que passavam. Estava ali desde os primeiros raios de sol iluminarem a fachada superior da igreja de Santo Expedito. Ainda atônito da noite anterior, não havia se alimentado bem, tinha ingerido um gole de café e um pedaço de pão dormido que um morador de rua havia dividido com ele. Bebeu de imediato o café ainda morno, mas manteve intacto por uns trinta minutos o pedaço de pão seco em uma das mãos. Com o corpo esmorecido, sem ânimo, resolveu comer o pão. Os farelos que caíam eram logo capturados por dois casais de pombos que estavam à espreita, indiferentes aos sentimentos dele. Aquele homenzarrão, marombado, estava brochado naquela armadura que se deteriorava em pensamentos.
Quando criança, os pais sempre o levavam para assistir as missas nos fins de semana. Os hábitos religiosos da família os seguiram por toda infância, de modo que participara dos encontros e reuniões semanais na capela de Santo Expedito. A frequência ao templo, quase diária, o fizera coroinha. Fora eficiente no cumprimento das funções litúrgica, conhecera de cor a prece de Todos os Santos, usara quando seu amiguinho, com quem mais conversava nos encontros da igreja, estivera doente. Recitara todas as noites antes de dormir e prometera decorar mais dez preces se seu amiguinho fosse curado. Também usara a prece de Todos os Santos e mais dez que ele aprendera, e acrescentara o Credo e a Salve Rainha, em favor de seu avô quando estivera na mesa de cirurgia.
Mas ontem à noite tinha invocado todas as preces, todos os santos e recitados algumas ladainhas. Já não lembrava de algumas recitações, fazia tempo que não praticava, buscou recursos em seu caderninho de coroinha que estava guardado em um baú de madeira antigo, abandonado em uma segunda dispensa de sua casa com fotos daquela época.
Já não partilhava de todas as crenças e símbolos de sua religião, pois havia sentido que os utensílios — as estátuas de gesso de Santo Expedito, Santa Luzia e de São Judas Tadeu, assim como a foto de Frei Damião, que antes estiveram em uma pequena gruta no cantinho do seu quarto — já não tinham mais serventia, e agora repousavam em outro baú na mesma dispensa, a qual ele chamava de espaço das recordações escondidas.
Seu último reduto de crenças nos ritos estava atrelado ao caderninho, nele estava contido todo o teor das preces, súplicas e cânticos devocionais. Porém, ele já lançava dúvidas diante dos fatigantes desafios que o consumiam ali. O sofrimento trazia consigo as nuvens cinzas nas quais encobriam a estrada que conhecera quando criança. Já não enxergava os utensílios doutrinário como dantes.
Bem ali, naquele banco da praça, vista do alto da cruz da igreja de Santo Expedito, que estava fechada, uma massa puntiforme, imóvel e pensante, reclamava todo o seu investimento escrupuloso de tempo infantil a um amontoado de frases deliberadamente costuradas a formarem malhas de pescar mentes desprotegidas em meio a oceanos de dúvidas.
Sentiu-se usado, puído pelas crenças nas quais justificavam sua importância baseada em um mundo além do presente, nas quais empurravam o gozo para dias abstratos e deixavam o lídimo da vida dominar o presente. Naquele momento interessava-lhe resolver somente o problema que o fustigava, e de nada serviria agarra-se a algo que apelava para um futuro tão distante.
Não, ele não acreditava que tinha perdido a fé, mas acreditava que perdera a crença de que certa atitude dogmática não resolvera muita coisa em sua vida. “Se recitações de textos sagrados e religiões resolvessem alguma coisa países como a Tailândia, Sudão, Tibet, Israel, Iraque, Afeganistão, Nigéria e Irlanda do Norte não teriam tantos problemas político-sociais por conta das religiões! A história está aí para mostrar que existiram vários outros conflitos em nome das crenças”, pensou empertigado. Não, ele não perdeu a sua fé. Todavia, ficou mais desconfiado.
Perdeu, aí sim, a prática automatizada pela repetição; aliás, ele a abandonou. Sentiu-se abandonado — ao perder o amigo e os avós, a tia que tanto amava. Sofria porque os pais sofriam doentes e sem recursos para amenizar tais provações, mesmo depois do cumprimento de todas as promessas e submissões — por isso abandonou aquela forma de se entregar ao sagrado. Tivera conquistas, que talvez não fossem por conta das várias orações, ladainhas e tantas outras que aprendera, mas elas não superavam o montante das perdas.
Bem ali estava a mente adulta que reclamava por ter aprendido tantas frases acessórias das quais não estavam surtindo efeito em sua vida. A mente adulta evocava a criança de outrora, que havia se doado, sofrera bastante, principalmente depois da perda do melhor amigo, ficara solitário na maioria das vezes; sofrera fisicamente — tinha hipercifose torácica — e psicologicamente.
Deram-lhe cinco alcunhas, entre estes “O corcunda” era o que mais odiava. Achara que praticando musculação com pesos feito com cimento em lata de tinta resolveria o problema e ficaria mais forte para se proteger das chacotas. Pelo contrário, aumentou ainda mais o seu problema físico, mas criou massa corporal. Abandonou a prática quando um professor de educação física o aconselhou a parar de praticar musculação com pesos caseiros e procurasse um médico. Foi ao médico, e desde então não mais praticou musculação com os pesos caseiros.
Agora, já casado, superado os demais problemas, surge outro. Segundo ele: “O maior dos problemas”, disse ontem à noite. Tudo o que havia aprendido sobre os cânticos, ladainhas, preces etc. não estavam tendo serventia imediata; nem tiveram no passado. O seu sofrimento era real, palpável, e desejava algo mais prático e menos subjetivo.
Daí em diante a base de sustentação espiritual abala-se ainda mais — a fé em um Deus ainda continuava — mas sofreu transformações profundas ao racionalizar: “De que adiante sofrer acreditando que em algum dia será amparado? E se isto não ocorrer? Sendo o sofrimento contínuo na minha vida, com raras nuances de felicidade, o que adiante crer na aposta de Pascal se na prática já aprendi a sofrer de tudo? Estou treinado para eternidade dos sofredores, se é que existe isso. Vive-se o momento porque é nele que a vida está. Como pode viver em algo se ainda não existe ou que supõe existir?” pensou em voz alta, mas ninguém tinha ouvido seus lamentos, todos estavam ocupados vivendo em outra bolha experiencial.
Bem ali, um corpo no banco da praça; e em certo momento, a mente errante. Um conjunto disjunto; uma única parte, em duas partes, teimava consigo mesmo: um corpo cansado e sentado, a mente ativa querendo sair. Querendo voltar ao hospital de ontem anoite.
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