Era cerca de nove horas de uma certa manhã de muito sol, em um certo dia num passado ligeiramente distante, quando entrei na agência bancária para cumprir as obrigações necessárias a fim de evitar o tal cpf negativado. Na época os pagamentos de boletos eram realizados somente nas agências bancárias (nos caixas eletrônicos ou direto no atendimento humanizado) e pelas Loterias Federais. Ao adentrar na agência procurei um ponto de apoio para organizar a papelada com mais calma.

No amontoado de papéis havia, além de um monte de números e datas, cartinhas: cartinha da companhia das águas, cartinha da companhia das luzes, cartinha da companhia das comunicações telefônicas entre tantas outras. Todas reivindicando o cumprimento do compromisso do mês, com ameaças veladas: “Após o recebimento deste aviso, V. AS terá 30 (trinta) dias para regularização dos débitos acima indicados sob pena de interrupção dos serviços”. Conferi cada uma e percebi que, na maioria das contas, tinha de ser paga urgentemente. Consciente dos amedrontamentos agilizei o processo, era inimaginável perder os serviços naquele momento, voltar a época dos homens das cavernas dentro de uma casa em pleno século XXI. O medo tem lá suas vantagens, foi assim que os nossos ancestrais conseguiram sobreviver e repassarem seus genes. Viviam em ambientes perigosos onde a qualquer momento poderia ser comido por predadores. Houve uma época em que não estávamos no topo da cadeia alimentar.

O local de apoio, o qual citei, era uma pequena mesa com tampo de vidro, que estava à direita de quem entra na agência, foi o local mais apropriado que encontrei. Inicialmente não havia mais ninguém utilizando o espaço. Daria para espalhar ali a papelada e organizá-la por ordem de ameaças mais iminente. É sempre bom raciocinar bem antes de resolver algo, naquele momento de urgência resolve-se primeiramente os problemas mais críticos dos problemas que já eram críticos. O que sobrar (ou seja, a companhia que ainda não enviou uma cartinha ameaçadora) é lucro para ser anexado a próxima problemática do mês vindouro.

Dentro da agência havia mais ou menos quinze pessoas, algumas delas estavam organizadas em fila única na espera de que os caixas eletrônicos fossem desocupados.

Não demorou muito até que chegou mais dois ocupantes para dividir comigo o pequeno espaço. Tive que retirar o excesso de papel da bancada e utilizar os dentes como clipe para prendê-los. Os ocupantes: um senhor de seus sessenta e poucos anos, de rosto alongado, feições presas e um rapaz de seus vinte e poucos anos, semblante apoquentado, que carregava no cós uma pochete cinza manchada, provavelmente, de refrigerante Coca-Cola. Na nossa frente estava uma pequenina cesta metálica de lixo, na cor preta, acoplada a mesa. A cesta estava quase vazia, tinha alguns pouquíssimos picotes de papéis.

A uns quatros metros de nós, e próximo aos caixas eletrônicos, estava o funcionário do banco, responsável pela limpeza daquele setor naquele dia. O funcionário parecia travar uma batalha difícil. Percebi a peleja quando ao olhar de relance aquele senhor que portava uma vassoura de cerdas finas e fazia movimentos vigorosos. Algo o atormentava naquele instante, pois implementava pressão mais intensa nas cerdas da vassoura contra o chão de modo que elas ficavam absurdamente curvadas. Percebia, ainda, que estava com semblante fechado e com a testa franzida. A peleja era contra alguns papéis grudados no chão da agência. Inicialmente usou a vassoura; depois, a pá de plástico com cabo alongado. Não obteve sucesso. O jeito foi se agachar para retirar os papéis utilizando-se das unhas. Somente desta forma conseguiu extrair aqueles filamentos de folhas que teimavam em querer ficar ali, grudados ao chão frio.

Esta cena se repetiu três vezes próximo aos caixas eletrônicos. Neste ínterim, as duas pessoas que estavam ao meu lado realizavam os seus procedimentos, não necessariamente ao mesmo tempo: retiraram os envelopes para depósito, pegaram uma caneta (o senhor de mais idade tinha uma caneta própria; já o rapaz, pegou a caneta que estava presa a mesa por uma corrente), preencheram os espaços em branco no envelope, colocaram o dinheiro a ser depositado, retiraram o papel que protegia o adesivo, jogou-os ao chão e em seguida fecharam os envelopes.

Assim que os dois saíram para fazerem os seus depósitos nos caixas eletrônicos, olhei para debaixo da mesa e lá estavam, além dos últimos papéis jogados, uma montanhazinha de papéis picotados que eram tanto dos envelopes para depósitos quanto de picotes de papéis de talões de cheques. Quando levantei a vista fiquei cara a cara com aquele funcionário da limpeza, já próximo da mesa com a pá e a vassoura tentando capturar os papéis atrevidos que, neste caso, alguns tinham ficado presos entre a perna da mesa e o chão.

Percebendo aquela outra peleja, que iniciara desde junto aos caixas eletrônicos, olhei para o funcionário e disse:

— Se algumas pessoas fossem um pouco mais conscientes facilitariam o seu trabalho ao colocar os papéis dentro da cesta de lixo.

O funcionário olhou para mim de maneira bem resolvida e falou:

— Mas é assim mesmo, eles têm que jogar no chão. Se eles colocar na cesta de lixo eu perdo o emprego, né? (sic)

Calado ouvi, calado fiquei. Apenas acenei com a cabeça de forma afirmativa. Pensei em usar a estratégias de Sócrates, a dialética. Queria testar a maiêutica socrática, mas só fiquei na parte em que ele aceita o ponto de vista do interlocutor. Pretensão da minha parte. Não vi ali um momento ideal para conversar com ele; afinal, iria atrapalhar o seu serviço. Contudo, já havia em minha mente um ponto de vista em relação a afirmativa travestida de pergunta da qual interlocutor laçou para mim. Se o momento fosse propício à troca de ideias, poderia ter dito que a maneira mais apropriada seria um olhar de outro ângulo do fato em questão. Vejamos: se a lixeira estivesse cheia, sem nenhum papel no chão, a execução do serviço seria mais fácil, posto que evitaria ter que se agachar de maneira incorreta como fizera: inclinando e forçando a coluna para frente, para pegar os papéis. Ou ainda, se a lixeira estivesse cheia, sem um único papel no chão, ele manteria o emprego por um simples motivo: não seria o gerente, nem o segurança, nem os caixas do banco que iriam esvaziar a lixeira. Estes serviços seriam realizados pelo próprio funcionário encarregado da limpeza.

Contudo, se os frequentadores daquele estabelecimento bancário tivessem o mínimo de empatia colocariam os papéis na lixeira. Com essa atitude, aquele senhor responsável pela limpeza poderia descobrir que a forma pela qual ele vinha raciocinando não era a mais ideal. Enquanto isto não acontecer o funcionário estará preso a sua crença que, em futuro próximo, poderá trazer para ele desconforto físico com perda da qualidade de vida.

Resolvido os por menores (ou seria os por maiores?) das contas, sai da agência e fui a banca de revista que ficava do outro lado da praça, de fronte para a agência bancária. Caminhei pela praça e passei próximo de um garoto sentado que bebia um líquido de cor cinza, em um copo de plástico descartável. A substância parecia ser o Guarazona (neologismo sintático do guaraná da Amazônia). Logo de cara julguei: aposto que ele vai jogar o copo de plástico ao chão. Fiquei curioso para saber qual seria o destino do copo nas mãos daquele garoto.

Desisti, momentaneamente, de ir até a banca de revistas só para comprovar ou refutar meus prognósticos. Sentei-me no banco da praça a uns cinco metros do rapaz e esperei o ato. De repente, PIMBA! O efebo fez o que eu matutara; pior ainda, ele jogou o copo debaixo da cesta de lixo. Imaginei que a lixeira estivesse cheia. Esperei mais um pouco até que ele saísse do local e fui lá conferir se a lixeira estava realmente cheia. Para minha surpresa, a lixeira estava vazia. Antes de seguir para a banca de revista olhei de relance as imediações da praça naquele comecinho do horário comercial. Nesta rápida olhada já era possível encontrar alguns papéis e sacolas plásticas presas por uma das reentrâncias da calçada.

Daí pensei: lixeiras vazias, povo sem noção e lixo nas imediações da praça. Deduzi que os profissionais de limpeza pública, possivelmente, já tinham realizado os seus serviços naquele dia (ou na noite anterior); porém, como sabemos, uma parte da população não tem o hábito de colocar o lixo em seu devido local, falta-lhe empatia, posto que não aprenderam a viver em sociedade.

Quando será que vamos nos conscientizar de que vivemos em um ambiente social? Viver em sociedade requer regras, e estas devem ser seguidas.  Sem isto não é possível vivermos de maneira civilizada. Ademais, o lixo urbano no nosso país circunscreve-se, penosamente, à coleta, em certa medida, ao destino a céu aberto. Raro são as cidades que dispõe de medidas apropriadas para o controle dos resíduos sólidos.