
Um novo dia começa para Elisabete, Fátima e Bruna. Atentas para o cumprimento de seus deveres elas dão prosseguimento ao ritual do dia. Tudo deveria seguir como de praxes, salvo algumas casualidades, as quais tornam-se comuns quando o hábito dá às caras. Para elas seria mais um dia de labuta, mais uma nova e habitual missão do ofício, SE NÃO FOSSE…
Elisabete é casada com Marcos, engenheiro mecânico. Eles têm dois filhos pequenos, um deles é asmático. Fátima é casada com Ramiro, hipertenso, professor de língua estrangera em uma escola de Ensino Médio. Eles têm um filho que goza de boa saúde. Bruna também é casada, tem três filhos, seu esposo é pedreiro, ultimamente está desempregado. Os pais de Bruna moram com ela: Raquel, mãe em tempo integral, tem 77 anos, é doente renal; e Rômulo, aposentado, tem 85 anos e é diabético.
Elas são funcionárias do mesmo ambiente de trabalho, mas quase não se veem, haja vista os afazeres que o ofício exige. Todas cumprem à risca seus deveres de servidoras públicas. Já incorporaram os hábitos da jornada de trabalho, os sobressaltos de cada dia desnivelam o desenrolar das atividades; no entanto, ao fim do dia de trabalho quase tudo volta ao prumo. Convém ressaltar que há algum tempo elas têm estado mais apreensivas do que de costume. Aquela rotina angustiante de outrora, a qual sufocava menos, passou a ser tenebrosa. Doravante, cada despontar de um novo dia traz consigo as incertezas recheadas de inquietude.
Elisabete é médica, Fátima enfermeira, e Bruna ASG de limpeza e higienização. Todas têm em comum familiares com algum tipo de doença. Desta forma, em plena pandemia da Covid-19, ambas saem das suas casas apreensivas. Mesmo mantendo todo o protocolo e procedimentos de segurança, além de estarem vacinadas contra a covid, elas sabem que a possibilidade de infecção é provável e a capacidade de transmitir o vírus, ainda que as chances sejam menores, também é provável.
Bruna sai de casa e pega o transporte público às 4h30 da manhã, chega cedo ao trabalho, mantem uma rotina apertada todos os dias. Está ciente da importância de desenvolver todo o seu trabalho preservando os cuidados necessários para a sua proteção, assim como, das demais pessoas as quais frequentam o hospital público. Seu zelo favorece o conforto e o bem-estar de todos. Tanto ela quanto os demais agentes de limpeza e higienização têm que dar conta do recado em diversos setores: enfermaria, salas de cirurgias, UTIs, quartos, banheiros, aparelhos e objetos nas salas, corredores, áreas administrativas etc. Bruna sabe que sua função requer muita atenção, principalmente quando ela é solicitada para fazer os serviços na ala dos pacientes infectado pela covid. A labuta é tortuosa, psicologicamente desgastante, e muitas vezes as condições de trabalho para uma funcionária pública não é a ideal, basta lembrar que sua pecúnia não dá conta das despesas da casa.
Contra ela têm os aumentos constantes dos preços do gás de cozinha, da energia elétrica, da água, das passagens do transporte público, da feira quinzenal, da internet, do telefone, além de ter que cobrir as taxas e multas por não pagar as contas em dia, em função dos constantes atrasos no recebimento do seu salário. Apesar de tudo, Bruna tem que dar a volta por cima, ser resiliente em casa e no trabalho. Não há tempo e espaço para as emoções, deve trancar a sete chaves o medo das incertezas diante da pandemia: quando em casa, o medo de ir trabalhar; quando no trabalho, o medo de voltar para casa. A despeito de tudo, ela tem que se mostrar alegre e receptiva. Afinal, é apenas Bruna, solitária em seus serviços, longe dos holofotes midiáticos. Ninguém quer investir em Bruna, contar a sua história, saber do que ela gosta, o que ela consome (ou deixou de consumir: a carne, por exemplo, por ter que escolher comprar o arroz e os ovos) com quem ela anda, se conseguiu pagar as contas do mês, se seu esposo e seus filhos estão bem.
Alguém poderia perguntar: o que Bruna tem de especial para ser destaque? Pois então, Bruna é uma excelente funcionária que sabe, como ninguém, seguir todas as etapas de limpeza e higienização solicitadas; ninguém passa o pano seco e molhado tão bem quanto ela, ninguém sabe utilizar os produtos químicos de maneira adequada como ela. Ninguém percebe a sua vitória, os seus “gols”, ninguém festeja as suas conquistas diárias. Bruna nunca recebeu premiação ou foi entrevistada pelos jornais por ser exterminadora eficiente dos vírus e bactérias no setor no qual é de sua competência. Jamais teve sua foto pendurada no recinto de trabalho como destaque do dia; ninguém agradece quando ela conclui, exausta, com eficiência a sua missão. Ninguém liga se ela venceu a batalha contra os monstros de cada dia. A única coisa que faz lembrar de Bruna, ou seja, reconhecer a sua importância naquele ambiente, é quando ela falta por estar doente, entrevada com dores na coluna e nas articulações; algumas vezes é atacada por problemas respiratórios, ou ainda, tantas outras dores (emocionais ou não) que aparecem de repente.
De resto, Bruma é só mais uma que chega para trabalhar. Cumprir sua missão comprida, e receber ao fim do mês o seu escasso salário no qual não é suficiente para combater o outro monstro feroz que perambula em sua casa: a crise econômica. Entretanto, Bruna não baixa a guarda, ela tenta se proteger dos ataques monstruosos fabricando novas armas: resolve fazer bolinhos de saia para serem vendidos na mercearia do Seu João; deixa com seu esposo, Pedro, meio cento de bolinhos para seres entregues em duas lanchonetes do bairro Paraíba. Sim… Bruna deixa os bolinhos feitos antes de sair para trabalhar, ela acorda às 3h da manhã, antes do galo cantar.
Quando Fátima chega para seu expediente já encontra tudo limpo. Tem a certeza de que a equipe de limpeza e higienização fez seu trabalho corretamente. De posse dos prontuários ela vai fazer as visitas aos pacientes. Na escala de serviços daquele dia, em especial na pandemia, Fátima foi designada para trabalhar na linha de frente no combate a Covid-19, ela sabia que a responsável pela limpeza dos setores mais críticos era de Bruna, conhecia a qualidade de seus serviços. Sabia também que quando Bruna assumia os pontos críticos de limpeza era sinal de que os riscos de infeções estariam amenizados, não que ela duvidasse dos demais colegas de trabalho, mas por conhecer Bruna há mais tempo, além de conhecer a sua dedicação em tudo que faz.
Fátima acordara cedo, mas não é o tão cedo quanto o acordar de Bruna. Ela apronta o café da filha às 6h, seu esposo está em casa por conta da pandemia, ele ficará encarregado cuidar da criança quando Fátima sair para trabalhar — antes da pandemia eles pagavam a uma babá. No horário de home office de Ramiro, aula remota, ele se tranca com a criança no quarto cheio de brinquedos e deixa Sheila, de 3 anos e seis meses, ao seu lado enquanto ministra às aulas: de vez em quando os alunos escutam o choro da Sheila. Ramiro pede desculpas. Guarda com ele, em um local reservado, um novo brinquedo (ou qualquer coisa que funcione como o plano “C”) de modo a consolá-la.
Fátima tem um carro popular e uma moto. Por conta dos aumentos sucessivos dos preços da gasolina, ela prefere ir ao trabalho de moto. Deixa o carro somente para passeios. Embora parte do salário da família é corroído pelo consumo contínuo de ambos os transportes (às vezes eles têm que levar seus pais para exames médicos e passeios) — Ramiro diz que eles não têm um filho: tem três, contando com os dois transportes que também necessitam de despesas. Mesmo assim, Fátima agradece a Deus por não ter que depender de transportes público, ainda mais nesta época tão obscura.
Fátima sai de casa às 6h15 e chega ao trabalho 30 minutos depois, no caminho vem pensando nos perigos aos quais ela está exposta, vem sofrendo quase as mesmas angústias das quais Bruna sente. É no caminho de ida e de volta que ela extravasa a ansiedade: chora e reza. Não faz isso na frente do esposo e nem da filha, preserva-os dos horrores dos quais ela vem acompanhando nos setores críticos das vítimas da covid. Em meio aos pensamentos carregados de medo apresentam-se sentimentos de revolta. Revoltada com as políticas públicas do governo federal, principalmente no tocante a saúde, que vem negando os perigos aos quais a população está exposta.
Às 6h55 minutos Fátima já está paramentada, vai até o setor visitar todas as alas, separadas uma das outras pelos níveis de gravidades, permanecendo mais tempo nos casos graves. Ela é enfermeira chefe responsável por orientar as atividades de cada equipe, assim como auxiliar em casos especiais, nos quais necessitam de maiores atenção, ou urgência. Todos os dias, exceções quando está de folga, depara-se com as lamentações, aflições e medos nos quais os pacientes vêm sofrendo — quando em casa, ainda que Fátima tenha tido um dia muito cheio, alguns até muitos sofríveis nestes períodos conturbados, reserva uma hora para a sua leitura, logo depois da filha adormecer e antes do esposo ir para a cama. Adora ler Machado e Dostoievski, ama ler livro sobre filosofia; em sua mesa de cabeceira está o livro de Nietzsche cujo título, Além do bem e do mal, brilha à luz da luminária — aqueles sofrimentos presenciados na labuta a faz lembrar de uma das frases de Nietzsche: “Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E, se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você.” A passagem a faz refletir sobre o quanto é dolorido viver, principalmente em momentos pandêmicos, seja esta dor emocional ou física, ou as duas ao mesmo tempo; mas diante do absurdo de tudo, há sempre uma esperança, seja esta advinda de um mundo cheio de paradoxos ou do fim dele, pela morte. Essa subjetividade a leva a pensar em mais uma frase de outro livro, Crepúsculo dos ídolos, do mesmo filósofo que diz: “Da escola de guerra da vida – O que não me mata me fortalece”. Nove horas depois de ter entrado no hospital, ela deixa a sala da UTI em mais um dia de batalha, mais uma missão cumprida em face do ofício, e apesar das perdas, vitórias se conquistam quando alguns pacientes retornam para os braços dos familiares.
Com o último recorte mental da frase do filósofo, O QUE NÃO ME MATA ME FORTALECE, ela se prepara para ir para casa. Novamente depara-se com o receio de ter sido infectada; respira fundo, e com o olhar voltado para o caminho de casa retira novamente da memória, de um jardim de sentenças, a sua oração preferida e a regra com lágrimas.
O começo do dia para Elisabete não é tão diferente quanto o de Fátima. Nem bem descansou do dia anterior e já tem que se levantar. Com a mente um pouco fatigada, desgastada pelos serviços que não dão tréguas — os últimos dozes meses não foram fáceis, o fluxo de pacientes infectados pela covid tem aumentado a cada dia, já ultrapassam as vagas dos leitos da UTI — Elisabete acorda às 6h30, sente que o corpo pede para não se levantar da cama, embora a mente já esteja em atividade frenética, ainda que pesada. Debruçada sobre a cama ela sente o aroma do café que vem da cozinha. A cozinheira já aprontou a refeição matutina, café da manhã bem reforçado com algumas frutas de época, sobre a mesa um bule branco de porcelana (estampado em baixo-relevo o bastão de Esculápio e uma serpente enrolada, pintada na cor ouro envelhecido, símbolo da medicina) com leite quente, ao lado uma variedade de cereais e uma jarra de vidro transparente com suco de laranja. Elisabete presa por uma boa alimentação, sabe que necessita estar bem nutrida para enfrentar as tribulações do dia.
Ela se levanta da cama às 7h e vai ao banheiro. Às 7h25 está a mesa juntamente com os dois filhos: Sophia, de sete anos, e Bryan, de cinco anos. Ao lado das crianças está a ama-seca. Roger, esposo de Elisabete, já havia saído para o trabalho, ele é engenheiro mecânico de uma retificadora de motores.
Após a refeição Elisabete passa a ordem do dia para as empregadas da casa, lembra dos cuidados em não abraçar ou beijar as crianças e nem falar próximo a elas sem máscaras. Para Elisabete a pandemia e seu ofício têm proporcionado uma avalanche de regras na casa, as crianças já sabem dos por menores nos quais devem seguir quando alguém, da família ou não, chegar em sua casa: não abraçar, não beijar e nem ficar próximo.
Às 7h40 Elisabete sai de casa para o trabalho. No conforto do seu carro ela liga o som, a música é um clássico de Sebastián Bach, Jesus alegria dos homens, escrita em 1716, canção cantada em coro. As vozes ecoam pelo interior do automóvel e ela ora pela segurança dos seus filhos, principalmente por Bryan. Lembra também de Felipe, criança de seis anos que perdeu a mãe para a covid. Foi ela quem acompanhou todo o quadro de desenvolvimento da doença em Cristina, mãe de Felipe. Lembrou das últimas fracas palavras de Cristina: — Doutora, pelo amor que a senhora tem a Deus, diga a minha irmã, que está lá fora, para cuidar de Felipe, e dar a educação que ele merece. Ao ouvir estas palavras Elisabete encheu os olhos de lagrimas e sentiu a garganta apertar. Naquele instante não foi possível sair qualquer som da boca da médica, pois parecia estar obstruída pela emoção.
Às 8h Elisabete chega ao hospital e às 8h15 confere com as enfermeiras todos os detalhes para aquele dia, antes de entrar para o ambiente de atividade confere num quadro de avisos duas folhas timbradas contendo todas as informações necessárias disponíveis para dar prosseguimento as atividades daquele dia nos setores mais críticos; na parte inferior do papel estava a assinatura de Fátima.
Naquele momento que antecede a sua entrada nas áreas mais crítica do hospital vem a sua mente as incertezas do dia, os sofridos sofrimentos alheios e a banalização da morte por um presidente que faz chacota daqueles que estão sofrendo, imitando as pessoas com falta de ar acometido pela covid. Este mesmo presidente quis retirar 35 bilhões de reais do SUS, para a sorte do povo brasileiro ele não conseguiu. É contra tudo isso, e em prol dos pacientes e seus familiares, que Elisabete respira fundo e condiciona seus pensamentos a manter acessa a chama da esperança: a esperança nos homens (e nas mulheres, é claro), esperança prática, com a chegada das VACINAS, com a IMENSA IMPORTÂNCIA DO SUS para nosso povo. Elisabete sabe que a coragem está ao lado do medo, e quando ambas são bem administradas a racionalidade e a intuição farão seus deveres. Já paramentada, de fronte para uma das salas, que mais parece uma nave espacial, onde está inscrito na porta “UTI”, ela adentra para mais uma jornada de heroísmo em prol de seus semelhantes.
Elisabete, Bruna e Fátima são somente três personagens que representam muitos heróis que lutam para que o mundo, mais especificamente o Brasil, atinja o patamar de segurança ante ao vírus da Covid-19. Estes são os verdadeiros heróis: HERÓIS SEM PLATEIA, sem holofotes. Dribladores das contingências, pilotos velozes na condução das emergências, que pensam rápido e ainda mantem o equilíbrio das decisões em estradas asfaltadas. Cada lance perfeito é cesta para a vida, embora nunca haja lance livre, posto que não há ausência de obstáculos nessa pandemia, cada ponto é digno de muitas comemorações. Neste mundo dos heróis sem plateia, cada braçada empurra o líquido das incertezas e a usa como ponto de apoio para se chegar ao outro lado, em terra firme. O recado que estes heróis deixam registrados no brio das suas ações é que O VERDADEIRO HERÓI não legitima seu próprio ego aspirando, tão somente, o seu bem-estar.