
Não é de hoje, nem foi de ontem, muitos menos de 200 anos atrás que o preconceito (pré-conceito: aquilo que afirmamos antes de conhecer, conceituamos antes de termos experienciado) vem fazendo parte de nossas vidas. Claro, cada vez mais este vem sendo alvo de discussão, o que anteriormente não era em maior grau. Basta ver os programas de televisão, as músicas, os livros publicados, os sites que informam sobre esta perigosa atitude.
É certo também que o espaço aqui no texto não é suficiente para discorrer sobre cada um dos preconceitos em poucas linhas. Neste caso, irei me deter em um pequeno fragmento de preconceito, um fato. Irei direcionar as observações a um específico objeto, a xícara a qual tomo o meu café (acrescentei aí uma pitadinha de ficção).
Mas antes, vamos conhecer melhor a origem do nome de um artefato muito utilizado na nossa cultura, e que é, de certa forma, recipiente mais comum para colocar certos regozijos para momentos especiais e criativos, a xícara.
Como sabemos, xícara é um pequeno recipiente usado especialmente para bebidas quentes, com alça (o que a gente chama de “asa”) para facilitar a manipulação. Se formos buscar a origem dessa palavra vamos ter que passar, obrigatoriamente, pelo México antes da chega dos espanhóis. Na verdade, a palavra xícara vem da língua náuatle (povo asteca) – língua indígena da região da antiga Mesoamérica – chegou até nós via língua espanhola por semelhança com a palavra jícara (recipiente feito, inicialmente, do fruto da cabaceira (jícaro), usado para a degustação de bebidas).
Todavia, a xícara a qual relato é um recipiente pequeno de porcelana (mistura em certas proporções de minérios como a argila (10%), feldspato (25%), quartzo (25%) e caulino (40%)) na qual é utilizada no meio doméstico para uso especificamente planejado. Embora haja artefato de porcelana bastante resistente, como por exemplo, certas velas de motores automotivos, blocos de motores etc.; as peças para confecções de pratos, bules e xícaras são extremamente delicadas. E é exatamente o objeto de uso caseiro no qual irei expor aqui.
Para efeito de informação, a porcelana chinesa (primeiros registros datam de séculos VI e VII) foi/e é umas das mais cobiçada do mundo, haja vista a delicadeza nos desenhos com diferentes estampas na qual são realizadas as decorações de cada peça.
Pois bem, para entrar no causo devo lembrar que parece ser parte do inventário de certas pessoas de que todo produto fabricado na China, e tendo preço barato, ou é de baixa qualidade, ou é falsificado. Basta lembrar a expressão de sentido depreciativo “xing ling” bastante usada pelos brasileiros. Possivelmente por conta do mercado paralelo de produtos genéricos e populares que vêm daquele país. Na verdade, e segundo Cymye, esta expressão não tem sentido na China. A palavra “xing” significa “estrela”; enquanto “ling”, “zero”. Em tradução literal tem-se “estrela zero” ou “zero estrela”. Hoje, já consagrado pelo povão brasileiro que, qualquer se seja o produto barato (possivelmente de baixa qualidade), sendo da China ou não, carrega em si a frase pejorativa do “xing ling”, referente a qualidade duvidosa do produto.
Contudo, venho fazendo uso de alguns produtos baratos, haja vista que certos produtos caros têm sido para mim mais caro do que os produtos mais baratos que, segundo dizem, são xing ling. Foi assim com as compras dos mouses. Os dois primeiros mouses comprados foram de marca reconhecida (caros, por sinal) e bem aceita no mercado de vendas. Estes duraram em média cerca de três meses de uso. Decepcione-me por tê-los comprado. Tudo é aprendizado, não é verdade? Mas não fiquei cabisbaixo, pensei em arriscar mais ainda. Visto ter pagado valores altos pensando na qualidade e durabilidade, e nestes dois casos não obtive retorno satisfatório, procurei investir em um produto de baixa qualidade (não reconhecido nos grandes mercados), o resultado foi que o produto, xing ling, durou mais de um ano. Já é a segunda compra de mouses realizada, e dando crédito, em algumas peças, aos produtos xing ling.
Outra situação inusitada, que neste caso não fui eu quem comprou, foi com a xícara (a da foto uns chamam de “xicrão”) ao qual utilizo para meu café da manhã (e da tarde). O causo foi o seguinte:
Estava eu a preparar-me para o café da tarde, distraindo-me com o crepúsculo do entardecer, fenômeno que se repete há bilhões de anos, e que eu havia escolhido aquele momento para compenetrar-me naquele facho inclinado de luz que entrava pela porta da cozinha, esquecendo por completo da ação de segurar a xícara, quando, no mais que de repente, a xícara cai das minhas mãos (para minha sorte ainda não tinha colocado o café na dita cuja) de uma altura estimada de um metro. Foram alguns pouquíssimos de segundos para que ela tocasse o chão duro, cimentado, frio e pronto para transformá-la em picadinhos de xícara. A cena foi tão rápida que não deu tempo formular minhas decepções futurescas. Contudo, a sensação de perda ficou por alguns minutos remoendo em meu juízo.
Enquanto o objeto delicado escapulia das minhas mãos, eu começava a fazer movimentos vigorosos, muito aligeirados, com as mãos abertas e olhos arregalados, a fim de tentar recuperá-lo da queda livre. Meus esforços para evitar a queda, o que aparentava destino, foram tão grandes aponto de achar que o artefato parecia ter adquirido vida própria, esgueirou-se e pulou para o nada. A ânsia maior foi quando percebi que…
– Acho que pulei… Ou será que não? Pensou a xícara. Ela parecia não entender aquele friozinho ascendente e arrepiante. – Estou caindo. – Seria um desejo que nascera do impulso de liberdade que me fez saltar para o nada? Ou foi simplesmente um desajeitado que me soltou?
Seja lá o que for, o fato é que a xícara teve seu instante de consciência existencial. Pensou o quanto tinha sido serviçal. Havia sofrido bullying por ser de outro país, de cultura diferente, exótica à luz de uma cultura ocidental (a qual ela agora fazia parte). Aquele momento era ímpar. Por força da natureza e/ou de um descuido humano ela era impelida a entregar-se aos prazeres de voar (leia-se, cair), sentir a sensação de liberdade ‘xicaresca’, de estar em férias dos serviços de ser xícara estrangeira, e mais, se regozijava em liberta-se daquele abandono no qual ficava por horas a fio em um canto do armário, exposta ao ridículo, ou em um canto escuro, isolada das demais xícaras decorativas – onde todos apreciavam e despejavam elogios. Naquela queda livre sentia que escapava para a liberdade, via o fim dos preconceitos toscos dos quais a desqualificavam por ser diferente, popularesco de quinta categoria. Naquele instante ela se emancipava-se do sofrimento da solidão, do escravismo e do preconceito.
Ao sabor da soberania, na fração de segundo disponível, ela esperava o contato com o lado cru da vida, o chão duro, cimentado e frio. Este a esperava para dizer que nem tudo na vida é somente ser xícara. Havia outro lado, o lado da desconstrução, das incertezas. O chão era para ela o fim da jornada de sofrimentos. O chão era a passagem para o paraíso, o céu das porcelanas desfiguradas. Contudo, nos milionésimos de segundos finais, antes do impacto, a xícara lembrou-se do seu nascimento, ela havia sido concebida a ferro e fogo. Descobriu que aquele cimento duro e frio não era capaz de levá-la a outro universo das possibilidades. Ela voltaria a ser escrava, sentiria novamente os desgastes emocionais do preconceito ‘xinguiliano’ e teria que cumprir sua função de objeto, conviver com os ossos do ofício, ser constantemente lembrada de que foi encaminhada por uma creche mercadológica de baixa credibilidade, adquirida pelo novo dono em uma promoção de fim de estoque. Mas tudo bem, é preciso ser xícara, assumir os dissabores e lutar por mais espaço. A queda, posto que não seria o seu fim, mas seu nascimento, sua prova de que tem resiliência emocional, e que a dureza fria de certos eventos a tornariam mais forte e resistente.
… a xícara ricocheteava desesperadamente no chão. A cada quicada daquele objeto delicado no cimento duro trazia-me a sensação de perda e culpabilidade, ao mesmo tempo em que projetava um fim escatológico para aquele artefato porcelânico. Embora soubesse da resistência de certos materiais de porcelana, o preconceito aos produtos xing ling, comprado em lojas baratais (leia-se, lojas que vendem produtos a preços mais em conta aos bolsos com menos contos (de réis)) sobressaia, e a certeza do fim utilitário daquela pobre xícara já se desenhara em minha mente, havia até ensaiado possível alcunha para aquele fim certo: “a ex-xícara xing ling”.
De repente ela parou de quicar, ficou debaixo da mesa (aqui cabe uma pergunta universal: por que quase todo material pequeno quando cai, especialmente tampas de perfumes e desodorantes, vão parar embaixo de alguma coisa?) Eu continuava parado, assustado, a olhar para a mesa que encobria o objeto efêmero. Confesso que me faltaram forças iniciais para conferir o resultado do evento. Tinha esperança, muito remota, de que o desastre fortuito não teria sido muito grave, a despeito de não ter ouvido barulho de estilhaço, isto já era algo para atiçar a minha felicidade ‘xicaresca’. Porém, necessitava saber qual foi o desfecho do fato. Inclinei-me prudentemente e olhei para o xing ling, a bichinha (leia-se, xícara) parecia não ter sofrido maiores danos. Um facho de alegria irradiou em minha mente quando testemunhei que ela estava totalmente intacta. Nem a alça, que era mais frágil, tinha sofrido qualquer dano.
Duvidei que seria um objeto xing ling. Peguei o artefato com zelo, olhei na parte debaixo e vi a inscrição em letras grandes: “Made in China”.
Não deixei barato, fui correndo para pesquisar tudo (ou quase tudo) sobre a porcelana chinesa e descobri algo fascinante…, mas isto é uma outra história.