olhar-sobre-a-velhiceCom o tempo, percebe-se que a cada instante em que a idade aumenta, e o ciclo de uma vida fica mais curto, vai-se confundindo o que foi realidade e o que foi ilusão. Há mistura de ambos; e já não se sabe, por conta da distância temporal, se aquilo foi vivido ou se foi sonhado (ou foi somente uma lembrança de algo desejado, porém não experienciado). Creio que estas sensações são sentidas, em maior grau, pelos idosos.  Sempre que possível observo feições dos idosos, busco a direção dos seus olhares, muitos destes olhares não observam o momento, só enxergam. Dar a impressão de que ele procura algo mais além, embora possa acreditar que essa busca ocorre na mente, e não no olhar. A busca é para o passado, em detrimento do futuro que diminui. Nesta procura deve haver ilusões, sonhos e fatos experienciados, ou mesmo uma mistura homogênea destas sensações.

Entender o olhar longínquo e subjetivo de um idoso não é tão fácil quando se é bem mais jovem. A juventude não se preocupa com uma futura velhice, são imortais como efebos. O filosofo do século XIX, Arthur Schopenhauer, declamava: “Vista pelos jovens, a vida é um futuro infinitamente longo; vista pelos velhos, um passado muito breve”. Para os jovens, segundo as pesquisadoras Andrea Thomaz e Célia Caldas (ver artigo publicado na Revista Kairós) que estuda o processo de envelhecimento, os idosos são “seres de outro mundo”. Isto remete as minhas lembranças de quando ainda era bem jovem e não pensava na velhice. Não sei se devo ficar preocupado com isso. Dizeres antigos afirmam que não. O Eclesiastes 3: 1-8 diz que tudo tem seu tempo. Logo, não estava no tempo de pensar sobre. Afinal, o escritor Herman Hesse já dizia em seu livro Sidarta: “A água corre para a água. A juventude procura a juventude”. Creio que, na época da juventude, não esperava a vida acontecer, fazia os acontecimentos. Pensava quase à semelhança de Sênica: “Enquanto se espera viver, a vida passa”. Assim, creio que não me culparia por não lembrar da velhice quando jovem. Concordo em parte com Chimamanda Adiche, escritora nigeriana, quando assevera: “Nunca, jamais peça desculpa por ser quem você é”.

Não obstante, quando a idade avança e a mente amadurece, os que eram jovens começam a sentir o afloramento agudo das percepções de mundo. O ângulo de observação mental sofre alteração em graus diferenciados, conforme vivência de cada pessoa. O escritor grego Nikos Kazantzákis apresenta-nos uma frase no livro ‘Vida e proezas de Aléxis Zorbás’, dita por um de seus personagens, Aléxis Zorbás: “Os raciocínios justos e honestos exigem sossego, velhice, falta de dentes”. Parece que o idoso atinge, com mais ênfase, o processo metonímico (referido por Foucault). Determinadas coisas são apreendidas concernente um mar de simbologias, significados adquiridos ao longo da idade, estes são complexados e dão agudeza de pensamento.

tempo_500x330-1Uma destas percepções é a passagem do tempo, as ações do tempo nas coisas materiais e subjetivas. Escritores, cantores e poetas já louvaram, e veem louvando, o tempo. Rubem Alves intitulava em um dos seus livros de Tempus Fugit (o tempo passa), Gilberto Gil (Tempo rei) e de Caetano Veloso (Oração ao tempo) já compuseram música sobre o tempo. Mário Quintana fez um belíssimo poema:

O Tempo

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa. 
Quando se vê, já são seis horas! 
Quando de vê, já é sexta-feira! 
Quando se vê, já é natal… 
Quando se vê, já terminou o ano… 
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida. 
Quando se vê passaram 50 anos! 
Agora é tarde demais para ser reprovado… 
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio. 
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas…

A passagem do tempo vai, dia a dia, provocando o encurtamento da vida, dos sonhos, dos desejos. É natural que todos passem, em maior ou menor grau, por este processo; salvo algumas circunstâncias. Para alguns idosos, a noção da passagem do tempo provoca efeito de contração das apetências. É o sinal para transformar tudo em “agora” (pra já!) o que seria um “algum dia”. Os objetivos mais distantes já não parecem tão palpáveis assim. Atenuam-se os ânimos das sensações da imortalidade e afloram-se o da mortalidade. Massifica a leveza do que era algodão e amolece a dureza do que era robusto. Secam-se os desejos molhados, e criam-se as couraças calcinadas pelo tempo.

Embora tudo pareça desastre natural quando se chega a velhice, e na verdade é natural, mas não é desastre, é o momento de aprender (pelo menos para aqueles que nunca pensaram no fato de um dia chegarem a velhice) a viver envelhecendo. Atenuar a força do tempo através do intelecto, e saber que não temos o controle de tudo. Agora, mais do que nunca, é aceitar o fluxo. Cultivar o carpe diem (aproveitar o momento). Se o tempo encurtou o sonho, transformando-o em algo incontinente, então já é hora de seguir corajosamente e não mais esperar, apenas ir. Deixar acontecer. Não é a hora do haikai (da tradição japonesa, onde, diante da proximidade da morte o guerreiro samurai recita suas últimas palavras em forma de poema), e sim de ampliar as percepções diante da vida, o trilhar do caminho com mais consciência. Que o olhar ao longe, em busca do passado, seja um agradecimento das experiência vividas (ou mesmo das sensações homogeneizadas que não se consegue identificar com clareza), e não uma prisão. Afinal de conta, se chegou até a idade mais avançada é fruto de muita batalha e muita sorte.