caetano-velosoRECONVEXO (posição, mistura de ponto de vista)

A música é um brado de construção de identidade. Na canção, uma parte dos versos é sobre a Bahia, na America – o ocidente, “a sombra da voz da matriarca da Roma negra” (cidade de Salvador, na Bahia), e ainda reforça a cultura quando canta o Olodum, “o preto norte-americano forte com brinco de ouro nas orelha”, e fala sobre o pelourinho de Salvador: “Que não seguiu o Olodum balançando o Pelô”, ou ainda, o Joãozinho Beija-Flor (artista plástico do carnaval brasileiro), o Bobô (futebolista brasileiro) e Gal Costa (cantora), em Gogóia, na música “Fruta de Gogóia” (veja aqui), do álbum de Gal Costa. Caetano também nos apresenta a senhora sua mãe, a Dona Canô, profundamente religiosa. Cita Iara (Mãe d’água), lenda indígena popular da Amazônia, muito conhecida pelos lados das margens do rio Solimões.

Caetano amplia o destaque para além da Bahia, além do Brasil, e destaca o internacional, quando retrata na música Henri Salvador (foi cantor, compositor e guitarrista francês de jazz) e Andy Warhol (foi um pintor e cineasta norte-americano). A música, que também fala sobre a construção de gênero, entoa o canto da liberdade, das condições de escolha, das fluidez dos desejos, dos sentimentos, da diversidade de pensamento. Fala também da Gita (Canção do Divino Mestre – o livro sagrado hindu – Bhagavad-Gita, reverenciado pelos devotos de Hare Krishna. O Bhagavad Gita é um dos capítulos específico do Mahabharata que contém mais de 200.000 versos) que foi cantada por Raul Seixas (veja aqui) e regravada por diversos cantores brasileiros como Zélia Duncan, Zé Ramalho, Ivete Sangalo, Daniel, entre tantos outros.

Outro ponto interessante da música diz “a chuva que lança a areia do Saara sobre os automóveis de Roma”, este ponto faz referência à Europa, geograficamente bem próximo da África. No trecho: “Você não me pega você nem chega a me ver; meu som te cega, careta, quem é você?”, Caetano apresenta a diversidade do Novo Mundo (o Novo Mundo é mais visto como ponto geográfico do que histórico), continente ocidental, e que destoa da cultura de outros mundos (o Velho Mundo), possivelmente considerados puros, de raça pura. O cantor, chama a atenção para o preconceito de alguns (de lá, por exemplo) que, ignorante ao querer se separar do que considera impuro, assevera o alcunha: resto do mundo. A ignorância apresentada é por falta de conhecimento, que no verso ele diz: “O cheiro dos livros desesperados”. Contudo, ela assevera a união humanitária quando canta: “Quem não é Recôncavo (possivelmente esta parte destaca o recôncavo baiano) e nem pode ser reconvexo” (questão levantada que denuncia a diferenciação sem a união, diante de tantas culturas em mundos diferentes, no mesmo planeta).

 

Letra:

Eu sou a chuva que lança a areia do Saara
Sobre os automóveis de Roma
Eu sou a sereia que dança
A destemida Iara
Água e folha da Amazônia

Eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra
Você não me pega
Você nem chega a me ver
Meu som te cega, careta, quem é você?

Que não sentiu o suingue de Henri Salvador
Que não seguiu o Olodum balançando o Pelô
E que não riu com a risada de Andy Warhol
Que não, que não e nem disse que não

Eu sou um preto norte-americano forte
Com um brinco de ouro na orelha
Eu sou a flor da primeira música
A mais velha
A mais nova espada e seu corte

Sou o cheiro dos livros desesperados
Sou Gitá Gogóia
Seu olho me olha mas não me pode alcançar
Não tenho escolha, careta, vou descartar

Quem não rezou a novena de Dona Canô
Quem não seguiu o mendigo Joãozinho Beija-Flor
Quem não amou a elegância sutil de Bobô
Quem não é Recôncavo e nem pode ser reconvexo