
Somos seres dotados de consciência, capazes de conhecer nossos sentimentos, pensamento e atos. Inferimos sobre o que ocorre ao nosso redor e ponderamos resposta de ação. Embora não saibamos de todos os prováveis efeitos de uma determinada ação a qual produzimos, há possibilidades de sabermos até que ponto (ou intensidade) certo ato provocará determinado efeito. Estamos, então, diante da consciência refletida. A consciência refletida planeia caminhos, torna-os menos tortuosos; mobiliza-nos a planejamento através da percepção imediata da realidade.
A despeito de Clarice Lispector (1920-1977) ter afirmado que “a realidade não tem sinônimo”, vou arriscar-me a discorrer sobre esta consciência, que carrega, além de inúmeras acepções, os impulsos inconvenientes que muitas vezes trazem prejuízos à vida de muitos indivíduos que não sabem lidar com esta pulsão, tão complexa e dificílimo (mesmo para os prováveis especialistas na área) de relatar. Um mundo paradoxal. Clarice estava certa quando disse que “viver não é relatável”.
Confesso que há uma certa angústia só em imaginar o que vou escrever. Mesmo já sabendo que não chegarei a nenhum lugar firme onde possa colocar os dois pés. O transporte para esta empreitada é somente conjectural; no muito, utilizo frases de pessoas que já trilharam este pântano, e algumas poucas experiências da pessoa quem vos escreve.
Isto posto, convido você a racionalizar por uma trilha meio que enviesada, cheia de bifurcações, cada uma abarrotada de coisas cabeludas, àquelas que não queremos nem saber, mesmo assim queremos conhecer. Vamos adentrar na discussão sobre o estorvo existencial e a nossa necessidade em relacionarmos com o outro. Todavia, sempre lembrando o que Albert Camus (1913-1960) enfatizou: “querer” é suscitar paradoxos.
Para começar, e já adentrando no mundo das angústias, retomo Camus, quando ele nos alerta: “começar a pensar é começar a ser atormentado”. Estas tormentas adentram nos vários campos das emoções humanas, ‘cutucam’ áreas escusas e põe para fora um baú cheio de espantos. Quimeras abomináveis capazes de cuspirem fogo para todos os lados. Ora bola! Viver não é para amadores. Querer conhecer-se, ter consciência de si em maior grau, liberta anjos e demônios [sentimentos excessivamente mesquinhos podem aparecer. Oscar Wilde (1854-1900) pondera sobre isto quando assevera: “a consciência nos torna egoístas”]. Só você saberá qual terá mais prioridade em sua vida. Esta ideia remete a famosa fábula dos dois lobos:
Existe um velho ditado índio Cherokee, que é conhecido como “Os dois lobos”.
Reza a história, que um velho índio Cherokee estava a ensinar o seu neto sobre a vida, e disse-lhe o seguinte:
“Está a acontecer uma luta dentro de mim. É uma luta terrível entre dois lobos. Um lobo é mau. Ele é a raiva, a inveja, o arrependimento, a arrogância, o ressentimento, a inferioridade, a superioridade e o ego. O outro lobo é bom. Ele é a alegria, a paz, o amor, a esperança, a serenidade, a humildade, a gentileza, a benevolência, a empatia, a generosidade, a verdade, a compaixão e a fé.”
O neto ficou a pensar no que o avô disse por uns instantes e depois perguntou: “E qual dos lobos é que vence?”
E o avô respondeu: “Aquele que alimentares mais.”
De modo mais complicado, podemos trazer algumas inferências sobre a consciência:
René Descarte (1596-1650) apresentou para nós o método cartesiano, e com ele a famosa frase: “Cogito, ergo sum” (tradução livre: Penso, logo existo). Ou seja, a consciência emerge como arquétipo de todo conhecimento adquirido. Espinosa (1632-1677) vai definir três gênero da consciência (imaginativo, racional e o perfeito – que é o conhecimento da essência) que vai do mais baixo grau ao mais alto grau sem haver exclusão de algum deles nos estágios. Para o filósofo, somente se chega ao conhecimento através dos afetos, o conhecimento do bem e o mal se faz pelas relações dos afetos (entenda afeto como uma forma de potência de sentir: afeto de maior potência aumenta a capacidade de pensar – nos traz alegria – e, ao contrário, o de menor potência, nos traz tristezas). – Entendeu? – Hum?!
De um modo mais popularesco, e não menos complicado, é possível deduzir: temos o conhecimento de que transportamos, em nossos ombros, o nosso fardo existencial. Ou seja, e como relatou Lucas 14: 25-33, carregamos a nossa cruz.
Cada um é transportador do seu próprio estratagema. – Ai de mim! – E tem mais… a contemporaneidade reforça ainda mais estas obrigações, como disse o sociólogo Zygmunt Bauman (1925-2017): “A incerteza do presente é uma poderosa força individualizadora. (…) Os medos, ansiedade e angústias contemporâneos são feitos para serem sofridos em solidão”.
Neste caso, a nossa responsabilidade cresce na medida em que convivemos. Viver em sociedade exige conformação. Todavia, trazemos conosco nosso ímpeto inconveniente, causa de muitos desajustes nos relacionamentos. Expressamos todo tipo de sentimento, desde os mais nobres aos mais escrupulosos (sentimentos amargos e mortíferos, desejos atípicos, impulsos anormais e antissociais). Vários sociólogos, psicanalistas, escritores e filósofos já falaram, ou escreveram, sobre estas inconveniências impulsivas.
Uma frase do dramaturgo romano Plautus (254-184 a.C.), e traduzida para o latim, expressa assim o homem: “Homo homini lupus” (o homem é o lobo entre os homens). Sigmund Freud (1856-1939), não creditando completamente em um homem controlado em seus impulsos por certa educação, afirmava que o homem é mau. Umberto Eco (1932-2016), em seu livro Pape Satan Aleppe (2016), coletâneas de crônicas, escreve: “O povo é mau e sempre gostou de ver os cristãos dilacerados pelos leões, os gladiadores que entram na arena sabendo que sua sobrevivência depende da morte do companheiro; sempre pagou para ver as deformidades das mulheres gordas no parque de diversões, os anões expulsos aos chutes pelo palhaço no circo ou execução de condenados em praça públicas”. Victor Hugo, na obra Os trabalhadores do mar (1866), aponta: “O bem tem unidade, o mal tem a ubiquidade. O mal desconcerta a vida, que é uma lógica. Faz devorar a mosca pelo pássaro, e o planeta pelo cometa. O mal é um borrão na natureza. (…) O mal está presente em tudo para protestar”.
Thomas Hobbes (1588-1679) dizia que o ser humano é naturalmente egoísta e mau, e compete à sociedade contornar isso – com uma coisa chamada “contrato social”.
A civilidade, explica Richard Sennett (*1943), requer atividade que venha proteger as pessoas umas das outras, permitindo, contudo, que possamos estar juntas. Para isto devemos usar uma máscara civilizatória de modo a permitir a sociabilidade pura (…). O sociólogo ainda acrescenta: “A civilidade tem como objetivo proteger os outros de serem sobrecarregados com nosso peso”.
Para viver civilizadamente necessita-se construir certas composturas. Conviver requer adaptar-se ao outro que, assim como nós, carrega os impulsos naturais que podem provocar desatinos e produzirem reações adversas ao relacionar-se com a outra pessoa.
Arthur Schopenhauer (1788-1860) criou uma metáfora (o dilema do porco-espinho), na obra Parerga e Paralipomena (1851), para ilustrar o problema da convivência.
O dilema do porco-espinho
Um número de porcos-espinho se amontoaram buscando calor em um dia frio de inverno; mas, quando começaram a se machucar com seus espinhos, foram obrigados a se afastarem. No entanto, o frio fazia com que voltassem a se reunir, porém, afastavam-se novamente. Depois de várias tentativas, perceberam que poderiam manter certa distância dos outros sem se dispersarem.
A fábula nos diz como devemos viver em sociedade. A filosofia budista enuncia mais ou menos isto quando aconselha utilizar o Caminho do Meio como uma forma equilibrada do viver. Ou seja, controlar os impulsos e o comportamento continuamente. Manter uma atitude em que envolva tanto a individuação como a convivência com a outra pessoa.
Neste caso, devemos manter distância moderada, plausível ao relacionamento, nem muito longe e nem muito perto (Vê bem! Não confunda com distância física, nem com o ‘gelo’ emocional – a falta de conexão emocional). O respeito ao outro estará no hiato, área livre de desgastes emocionais. Cada indivíduo, de maneira deliberada, e com suas fronteiras emocionais movíveis, se aproximaria um do outro a uma distância saldável, isto impediria que as quimeras, suas ou do outro, atinjam a outra margem. A distância (o hiato) terá que ser flexível e suficiente para se criar empatia e impedir a indiferença. Criar empatia é aceitar o outro com seus kits completo (seus conflitos), dizia minha professora. As relações nos ensinam a nos conhecermos; estes ensinamentos, juntamente com a consciência refletida de cada um dos seres participantes destas relações, planeiam as estradas para futuros menos angustiantes. O outro é indispensável para minha existência, tanto quanto, ademais, o é para o meu conhecimento, disse Jean-Paul Sartre (1905-1980).
Sem dúvida! Se colocarmos tico e teco (leia-se os dois lados do cérebro) para funcionar, depreendemos que, atualmente (a despeito das problemáticas que aí estão), abre-se uma oportunidade para praticar a empatia. Estamos todos no mesmo barco, sentindo as mesmas ameaças (uns mais que outros) da pandemia; as fronteiras estão bem mais próximas e os hiatos ficam mais flexíveis, encolhem e se afastam, mas se mantém em suas estruturas. Esse avanço e recuo, flexibilidade e resiliência, facilitam a conexão emocional. Compreendemos a angústia do outro ao percebemos semelhanças com a nossa, daí deliberamos conexões emocionais mais pertinentes capazes de nos tirar desse mormaço de eventos negativos.
As epidemias existem há muito tempo, elas vão e vêm, estão à espreita; a história está aí para nos contar: varíola (1550 a. C), peste de Atenas (450 a.C.), malária (séc. 3), peste Antonina (165 d.C.), peste de Justiniano (541 d.C.), lepra (séc. 12), peste negra (1347), sífilis (1494), tifo (1805), cólera (1817), tuberculose (1850), febre amarela (1878), gripe espanhola (1889), gripe russa (1889), gripe aviária (1900), gripe suína (1919), gripe asiática (1956), gripe de Hong Kong (1968), ebola (1976), AIDS (1981). Suas aparições costumam provocar grandes mudanças de comportamento e estrutura da sociedade.
A pandemia da Covid-19 nos colocou diante de alguns dilemas da existência. Percebemos o quanto somos, ao mesmo tempo, frágeis e fortes diante das contingências naturais. Frágeis por estar diante do incerto, do desconhecido que sempre assusta – algumas vezes estamos indefesos por não sabermos o que vem por aí. Fortes porque, através das relações, podemos unir forças, criar mecanismos de defesa e até antever possíveis ameaças. A peste mexe com o social, coloca em evidência as falhas da convivência mal planejada, desfocada da realidade e preconceituosa. Sem dispor de uma boa organização social a peste tende a ganhar espaço, cria raiz e danifica as relações sociais. Camus nos alerta sobre isto quando declara em sua obra ficcional, A peste (1947): “quanto mais a epidemia se estender, mais a moral se tornará elástica”.
Se por um lado a peste revela a nossa debilidade social – a forma capenga do convívio social. Por outro, nos coloca em alerta, abre oportunidade para rever diretrizes, nos coage a fazer um check up relacional e nos mostra que aprendemos algo: a partilha, o reconhecimento do que seja realmente o amor ao próximo, a valorização da liberdade, a necessidade do outro para vencer as ameaças do flagelo, entre tantos outros. Ah!… aprendemos também que beijos, abraços e aperto de mão são expressões humanas de grande valor e que devemos preservá-los no fundo dos nossos corações (leia-se nas nossas mentes); e ainda, que uma família estruturada é o salvaguardo da saúde física e mental dos indivíduos que vivem embaixo de suas asas.
Pois então, não devemos nos abater, logo mais esta peste irá passar, como todas as outras passaram, e aí podemos respirar um pouco mais sossegado. Mas atenção: não devemos baixar a guarda, o ‘coisa ruim’ está à espreita. “Jamais alguém será livre enquanto houver flagelos”, disse Camus.
Já estamos chegando ao fim de um ano conturbado. Sem demora, o novo ano já se faz presente a partir da esquina da bodega de seu Zé. Como uma Maria Fumaça, o novo ano vem aspergindo novos odores. Traz novas esperanças, novas ilusões (a vida sem ilusões é árida). Jano (ou Janus), divindade romana que deu origem ao nome do mês de janeiro, é o deus das entradas, das transições, já abre seus portões, traz as boas novas. Santo Agostinho (354-430 d.C.) atestou: Jano tem poder sobre todos os começos”.