Uma boa maneira de viver o confinamento é evitar as profecias escatológicas, já bastam as que recentemente foram disseminadas no meio social. Se um cometa ainda não destruiu o mundo, não será um vírus que irá fazer. Evidentemente, nesta crise em especial, a espera é angustiante, posto que é em longo prazo. Não sabemos se seremos ou não contaminados, se sairemos vivos se formos contaminados. Um resultado final, uma vacina contra o Covid-19, só será possível num espaço de tempo de 12 a 18 meses, segundo informam alguns especialistas. Contudo, a pandemia não justifica o fim do mundo, no muito pode ser o seu fim, mas não é o do mundo.

Esta crise faz lembrar as concepções do pensamento do sociólogo Zygmunt Bauman, “modernidade líquida”, na qual ele fala que

“a incerteza é o habitat natural da vida humana – ainda que a esperança de escapar da incerteza seja o motor das atividades humanas. Escapar da incerteza é um ingrediente fundamental, mesmo que apenas tacitamente presumido, de todas e quaisquer imagens compósitas da felicidade. É por isso que a felicidade ‘genuína’ adequada e total sempre parece residir em algum lugar à frente: tal como o horizonte, que recua quando se tenta chegar mais perto dele”.

Na economia globalizada o vírus vem provocando grandes perdas, na sociedade globalizada a solidez se liquefaz.

Convém destacar, no enfrentamento da pandemia, a necessidade de ficarmos em casa, resguardarmo-nos por um certo período para evitar a disseminação do vírus, é óbvio que em nosso país nem todos têm este privilégio (e as vezes, quando o têm, não há nem as condições básicas para higiene); entretanto, para os que podem, devem fazê-lo até mesmo para assegurar a vida dos que não têm um local para se resguardar. Devemos seguir com o enclausuramento temporário, devemos nos adaptarmos ao espaço que temos, adaptarmos a esta nova conjuntura. Isto provocará um certo desconforto, é natural que cada um vivencie o confinamento de maneira diferenciada, mas há um certo padrão social experiencial em viver o enclausuramento; por exemplo, na classe alta e média sobrevém a melancolia, na baixa traz o sentimento da sobrevivência pelo fato da ausência da labuta diária, o ganha-pão.

Embora haja estas variações de sentimentos e situações, o fato é que o enclausuramento gera inquietação (em menor ou maior grau), pois somos seres sociáveis, carecemos de relacionamentos; desde nosso nascimento necessitamos do outro, de alguém que cuidasse de nós, nos livrasse dos perigos, nos desse alimento, nos guiasse até que atingíssemos um certo nível de vivência. A pandemia nos tirou, em certa parte, esse relacionamento com o outro, nos confinou em pequenos grupos, mais especificamente em uma pequena parte de um grupo familiar. Ficamos restrito a um pequeno espaço no qual temos que ressignificá-lo; se isto e o que temos, então devemos reinventar o ensejo.

Self Made Man

A mudança de foco requer reconstrução, refazer a forma já lapidada pelos nossos hábitos anteriores à crise. É como começar de novo, refazer tudo a partir da pedra bruta. Lembra a arte Self Made Man, escultura de Bobbie Carlyle, que descreve um homem lapidando a si mesmo a partir de uma pedra bruta da qual fazia parte. Devemos criar novos hábitos, pelo menos momentaneamente, até que tudo cesse (ou diminua). O importante é que possamos aproveitar este tempo (essa espera) de maneira construtiva. Cada um, à sua maneira, buscará a sua potência de agir (como dizia Spinoza, filósofo racionalista do século XVII). Baruch Spinoza afirmava que tudo já existe, e existe ao mesmo tempo, e é daí que se deve dizer que ela é potência infinita. Tudo está aí, é questão somente de saber utilizar, fazer a escolha mais apropriada para o seu viver, seja em qual circunstância esteja. Enquanto esperamos a normalidade devemos reinventar o momento.

Heráclito (filósofo pré-socrático – 540 a.C. a 470 a.C.) aludia na Grécia antiga o “Panta rhei”, expressão que tinha como significado o processo de mudança contínua das coisas. Tudo passa, tudo flui. É dele a célebre frase “ninguém pode tomar banho duas vezes nas águas do mesmo rio”. Assim também devemos pensar o enclausuramento. Mais cedo ou mais tarde chegará ao final. Se não pela exclusão do vírus, então pela economia do país, posto que esta não suportará um longo e contínuo confinamento da população. O trabalho coloca em movimento a sociedade, o povo necessita do trabalho. Voltaire (filósofo iluminista francês, séc. XVII e XVIII) afirmava que o trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade.

Provavelmente haverá outras reclusões, tudo vai depender de como o vírus vai se comportar em um meio social mais ou menos normalizado, mas todos os confinamentos que surgirem terão o seu fim, mais cedo ou mais tarde. Somos obrigados a voltar ao fluxo social. Tudo tem o seu tempo, está escrito no Eclesiastes III. PANTA RHEI, assim falava Heráclito.