Sonhos encurtados 
(…) e ele parou, momentaneamente, sentado à mesa quando rebuscava em sua bolsa uma caneta e um caderno, absorvido pelos pensamentos, percebendo em meio às vozes, rebuliços e algazarras, aqueles jovens cheios de possibilidades, embrenhados nas alegrias do momento em que tudo é possível, onde os obstáculos são tão ínfimos que não aparecem nos lampejos das jovens mentes, e onde os horizontes são tão amplos que os olhos não têm onde acomodar-se.
 Ali mesmo, inconscientemente mexendo em sua bolsa, ele sente que seus sonhos encurtaram, que seus horizontes de objetivos já não são mais tão amplos, ficaram reduzidos, esmagados pelo encolhimento do tempo de sua existência, que comprime as vontades, os desejos, os sonhos.
Tudo ficou reduzido, muito curto, muito ínfimo. Agonizado pela mente que o faz lembrar da sua juventude. Aos 70 anos, confinado no micro espaço de tempo do presente, ele se sente desalentado, percebendo a falta de algo; uma sensação de missão não cumprida o faz abandonar a busca pela caneta e o caderno; parado com uma das mãos dentro da bolsa, enquanto a outra segura a alça, ele mergulha no passado.
Um passado no qual seus pais eram retirantes no Sertão Nordestino. Sua família, composta de quatro pessoas e um cão, na década de trinta, vivia à beira da miséria. Obrigada pela circunstância do momento a percorrer longas distâncias a pé em busca de trabalho e alimento. Ele, com dez anos, o mais velho dos filhos, sonhava em ser professor. Lembrava-se das aulas da professora de História, tinha saudade dos colegas de sala que teve que deixar antes do período letivo encerrar. Aquilo tudo era novo para ele, sabia que tinha passado por muitas dificuldades, mas aquele momento não era favorável a realização do seu sonho; não era possível estudar, posto que as necessidades básicas à sobrevivência falavam mais alto. Algumas vezes ele sentia vontade de chorar, lembrava-se das brincadeiras com os amigos. De vez em quando suas lembranças eram cortadas pela sensação de fome. Tudo era escasso, o alimento era pouco, não era possível cevar-se, posto que tinha que ser divido com os demais. Um desalento que só passava um pouco quando o seu cachorrinho, companheiro de todas as horas, cruzava por entre suas pernas o convidando para brincar.
De repente, ele escuta uma voz ao longe e sente um toque em sua mão, era um dos seus alunos, perguntando sobre qual é a página do livro em que estavam os exercícios nos quais iria responder. De pronto, Sebastião Silva, professor há 15 anos naquela escola no subúrbio paulistano, retoma as instruções diante de uma sala de aula composta por 30 alunos: “Psiu! Vamos lá pessoal, vamos nos concentrar nos exercícios da página 70, quero que todos leiam o texto que antecede os exercícios, e logo em seguida, responda-os”. A turma volta-se para seus livros, em movimento uníssono das folhas, das quais os jovens folheiam para chegar ao ponto demarcado, no cumprimento das instruções do professor. O texto trazia como ponto de foco o assunto sobre a formação de consolidação da República e suas crises.
 Já consciente do momento presente, o professor Sebastião pega seu material e faz anotações dos tópicos a serem estudados para avaliação. De momento a momento o professor certifica-se de que seus alunos estão empenhados em pesquisar e responder as questões. Em uma destas certificações ele volta ao devaneio sobre a sua vida.
Olhando fixamente para aqueles jovens, alguns conversando, outros compenetrados na atividade, ele sente que o sonho que tinha quando criança, em ser professor, foi realizado. Demorou, foi muito sofrido, mas cumpriu a meta. Embora a remuneração não seja o suficiente, vive apertado com as contas, devendo a mercearia e a farmácia, vive com sua esposa e mais dois filhos em casa alugada. Mesmo com dificuldade econômica viaja ao Sertão do Ceará a cada dois anos para visitar a sua mãe, viúva e com noventa e cinco anos de idade, que mora com a sua irmão, hoje casada e com três filhos, empregada em uma loja de vendas de roupas.

Anos anteriores Sebastião buscou melhorias para sua profissão, tentou diversos concursos para professor universitário, porém não conseguia aprovação no cargo. Faltava-lhe tempo para estudar, a concorrência era sempre elevada e, embora passasse no ponto de corte das provas, ficava muito atrás dos demais concorrentes. Hoje, já na terceira idade, percebe que suas esperanças a um cargo de professor universitário já encolheram muito, não é possível alimentar sonhos muito além, tudo está muito próximo e muito pequeno. Embora este sentimento o aflija constantemente, principalmente quando ele compara com os sonhos de muitos daqueles jovens, alguns de famílias de classe média, em um período de época onde tudo funcional na sua normalidade, não se deixou entrar em parafusos. A vida segue…

Por Lindeberg Ventura