A expressão popular “trabalho de Sísifo”, de origem na mitologia grega1, é utilizada quando se está diante de um trabalho que exige esforço repetitivo (ad infinitum), no qual o resultado parece ser sempre improdutivo e frustrante. Limpar a casa, por exemplo, é um deles. Assim que você conclui a tarefa percebe que ela já está empoeirada. O mesmo se repete na limpeza dos livros e da estante.

Quase todo o fim de semana tenho a obrigação de fazer a limpeza geral dos livros e do quarto. Levo em média três dias, começando na sexta feira e terminando no domingo, com algumas pausas. A labuta vai de vento em popa quando o HUMOR ESTÁ ESTÁVEL. Há prazer em saber que deixarei, ao final, tudo limpo, organizado e com aquela sensação de controle — nossa mente adora estar no controle, e é por isto que o ato de limpar traz certos regozijos. Criar uma atmosfera de ritual facilita o processo e até dar impressão de que você concluiu tudo antes do tempo previsto.

Sem demora, e ao sabor das belas composições musicais, dar-se o início da jornada de três dias. As músicas clássicas são minhas preferidas, embora utilize para a abertura dos trabalhos as composições de Vangelis, Conquest of Paradise, do filme 1492 – A conquista do paraíso, de 1992, seguida de Titans, também do compositor Vangelis, no álbum de Alexander.

Empreendo a jornada começando pelos livros. Para isto, crio uma atmosfera cerimoniosa. A título de informação: somando livros e revistas, até o momento, estou com um pouco mais de mil para serem limpos.

Com muito tato e alegria de espírito, retiro o livro da estante e o aperto fechando as folhas. Esta pressão evita que a poeira caia para dentro do livro. Em seguida, passo um pequeno pincel nos cortes, retirando a poeira. Na sequência, e delicadamente, bato no livro folheando-o para que o ar penetre por entre as folhas de modo a facilitar a “respiração” delas. Posteriormente, passo um pano umedecido em álcool na capa. Estes procedimentos repetem-se para todos os demais de livros e revistas.

Para a limpeza da estante utilizo outro pincel, com mais cerdas, e faço a retirada da camada de poeira mais grossa; em seguida, passo um pano seco e encerro o processo utilizando um pano umedecido em álcool, a setenta por cento. Antes de colocar os livros de volta na estante verifico se não há inseto escondido nos compartimentos. Depois confiro se a madeira está em bom estado.

Ao passar para outro setor, onde estão os altares e as decorações (que também estão na estante), o estilo musical muda. Além de colocar as músicas da cultura céltica, chinesa e japonesa, entram, também, os sons religiosos — a playlist está recheada de cânticos gregorianos2, kirtans3, bhajan4 e mantras5.

Nos altares e objetos de decorações — estátuas (em metal, madeira, porcelana e resina) de Buda, Krishna, Ganesha e Shiva; algumas imagens em quadro de Cristo, Paramahansa Yogananda entre outros; e ainda, os incensários e os japamalas6 — a limpeza segue o mesmo direcionamento dos demais objetos, com a acréscimo da utilização de óleo restaurador e protetor da madeira. No entanto, há certos cuidados com objetos mais frágeis, nos quais a limpeza deve ser feita com muita prudência.

Depois de realizados estes procedimentos faço a limpeza do quarto.

Começo passando um pano seco nas cadeiras, bancos, mesas e nichos; depois, bato nos tapetes, nas almofadas e banco com estofamento. Dando prosseguimento, passo o pano no piso encharcado em água, álcool e outra solução com aromas; em seguida, após espremer o pano, passo novamente no piso a fim de retirar o excesso da solução.

Pronto! Missão cumprida. Para comemorar o fim desta jornada coloco a última música da playlist: Alegria (composição da companhia circense Cirque du Solei).

Entretanto, em dias quando O MAR NÃO ESTÁ PRA PEIXE, todo aquele primoroso cuidado sofre significativa involução.

O começo é sempre mais difícil. Olhar para a estante e ver uma lâmina fina de poeira ameaçadora a engolir os livros é angustiante. Mais ainda, os livros olham para você com pedidos de socorro: gemidos coléricos, ensurdecedores, ecoam da estante e penetram no seu mais íntimo ser. Nesta hora, o canal da empatia, entre você e os livros, tenta sensibilizá-lo diante da lástima daquele instante. Ela o faz sentir na pele o suplício trazido pelo descaso, as unhas cortantes do tempo, a aspereza das partículas da decomposição.

É neste dia tenebroso que a empatia não consegue suplantar as forças da apatia, do desânimo, do momento de rolar a rocha morro acima. Sísifo sente o peso do enfado, do trabalho repetitivo, da luta contra a entropia negativa (conceito da teoria da Segunda Lei da Termodinâmica) — no qual tudo caminha naturalmente para a desordem, para a disfuncionalidade. A organização descambará sempre para a deterioração.

Cansado de lutar contra as engrenagens do universo, languido, cogito me entregar. Mas decido que a minha renúncia não será tão fácil assim.

Com olhar descontente fito tudo, de uma única vez, o que tenho para fazer. Pressinto a jornada de três dias entediante, decido que não vai ser em três dias: “hoje será em poucas horas”, digo para mim mesmo. Coloco as mãos na cabeça e penso: “Por que acumular tudo isto?  Quando eu for embora daqui não levarei nada, e não sei nem se vai ficar alguém para ser o guardião destas coisas”.

Retomo a consciência da labuta, volto a trincheira, e começo a limpeza. Procuro os pontos mais empoeirados da estante e retiro os livros. Mãos e braços ameaçadores castigam a madeira ao bater com o pano seco. Na sequência, pego um dos livros e passo rapidamente o pincel nos cortes — pela ligeireza e desmazelo do movimento o pincel escapa da minha mão e se atira ao chão. Inclino-me para pegá-lo, percebo que o chão está escorregadio, lembro-me de que ainda tenho que varrer e, talvez, passar o pano úmido — mantendo ainda o livro preso em uma das mãos, uso a outra para esbofetear e folhear, a fim de retirar a poeira grudada na capa e entre as folhas. Coloco-o de volta na estante e repito o procedimento para os demais.

Olho para as imagens religiosas nos altares, além das parafernálias de utensílios decorativos, que sempre em silêncio me observam apáticas ante a minha agonia. Resmungo ao pensar nas pinceladas mais caprichadas, com muito tato, nas imagens de porcelana, mas logo me encorajo em saber que as outras são de madeira, resina e metal. Suspiro, tusso, e, aos troncos e barrancos, implemento a tarefa, deixando de lado as imagens e utensílios de resina. As limparei da próxima vez.

Assumo a última tarefa, varrer. Nada melhor do que saber que já estou próximo do fim. Varrer é o arremate. Decido não passar o pano úmido, por isso o ânimo vai dando o ar da graça. A incumbência é realizada com ligeireza, temperada com um pouco de descaso. Noto que a vassoura não consegue retirar suficientemente o pó do chão. Volto a trás, decido passar o pano úmido no piso. Findo o processo. Avalio o serviço: “Melhor do que não fazer nada”, penso.

Embora ocorram as variações de humores, sobretudo quando a languidez dar as caras, há de se alimentar da ação do limpar, há de se perceber Sísifo feliz, como frisou bem Albert Camus.

Sísifo, depois do esforço monstruoso em rolar a rocha montanha acima se ver sem forças antes de chegar ao cume. É vencido pela rocha, que rola de volta para a base da montanha. Sísifo olha resignado para a rocha lá embaixo. É neste instante, ao ver do alto o seu fardo, que ele se alegra. Deve cumprir a sua obrigação, descer novamente e voltar a tarefa. “A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem”, escreveu Camus.

Em qualquer humor, com ou sem suavidade, tenho que cumprir a minha missão. Tenho que me ver feliz diante de um trabalho de Sísifo. Sou o guardião do que foi adquirido. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativa, disse a raposa ao Pequeno Príncipe (no livro ‘O Pequeno Príncipe’ de Antoine de Saint-Exupéry). Preciso passar o bastão para o próximo corredor. Este bastão deve estar bem cuidado. Se não houver outro corredor não tem problema, minha parte sempre será feita.

1. Mito de Sísifo – O mito de Sísifo, considerado o mortal mais astuto de sua época, narra a história deste personagem (o primeiro rei de Corinto) que ficou conhecido como um dos maiores ofensores dos deuses gregos. Por enganar os deuses foi punido por Zeus, condenado a passar a eternidade empurrando uma pedra até o cume de uma montanha. No entanto, sempre que a pedra estava prestes a chegar ao seu objetivo, rolava montanha abaixo e Sísifo tinha que voltar a executar o trabalho todo novamente. A partir desta circunstância, atualmente, quando alguém diz que tem um “trabalho de Sísifo” é porque possui uma tarefa impossível ou interminável para cumprir.

2. Cânticos gregoriano – canto litúrgico, gênero de música sacra, próprio da Igreja Católica.

3. Kirtans– mantra de descontração, canta-se muitas vezes batendo palmas. O Om Namah Shivaya é um dos exemplos mais famosos de kirtans.

4. Bhajan  – em hindi significa salmos, é qualquer tipo de música devocional hindu escrita como um poema.

5. Mantras – são os versos dos Vedas7.

6. Japamala (ou Mala) – no cristianismo é conhecido como rosário, ou terço.

7. Vedas – escrituras religiosas mais antigas da humanidade. Para os hindus, os vedas formam a origem dos seus valores filosóficos, culturais e sociais.