_DSC0495-00.jpgComer o Bruxo do Cosme Velho (adaptando a metáfora da música, “Vamos comer Caetano”, de Adriana Calcanhotto) é sempre um prazer imenso. Aumenta a euforia, secam-se os olhos, resseca-se a boca; mas a vontade diz: não pare, não pare… O Bruxo do Cosme Velho, epíteto consagrado a Machado de Assis, escreveu mais de seiscentas crônicas, entre as quais destaco “O boi” (abaixo). Machado utiliza-se da analogia para criticar o debate entre o público (a opinião pública) e os pecuaristas (nos anos de 1876, mais precisamente no primeiro dia de outubro). O escritor insinuou que o boi não tem nada a ver com a briga entre eles, e que ninguém se importa com os interesses do animal.

Crônica Machadiana: O boi

O boi, substantivo masculino, com que nós acudimos às urgências do estômago, pai do rosbife, rival da garoupa, ente pacífico e filantrópico, não é justo que viva. . . isto é, que morra obscuramente nos matadouros. De quando em quando, dá-lhe para vir perfilar-se entre as nossas preocupações, como uma sombra de Bânquo, e faz bem. Não o comemos? É justo que o discutamos.

Veio o boi (…), estacou as pernas, agitou a cauda e olhou fixamente para a opinião pública.

A opinião pública detesta o boi… sem batatas fritas; e nisto, como em outras coisas, parece-se a opinião pública com o estômago. Vendo o boi a fitá-la, a opinião estremeceu; estremeceu e perguntou o que queria. Não tendo o boi o uso da palavra, olhou melancolicamente para a vaca; a vaca olhou para Minas; Minas olhou para o Paraná; o Paraná olhou para a sua questão de limites; a questão de limites olhou para o alvará de 1749; o alvará olhou para a opinião pública; a opinião olhou para o boi. O qual olhou para a vaca; a vaca olhou para Minas; e assim iríamos até a consumação dos séculos se não interviesse a vitela, em nome de seu pai e de sua mãe.

A verdade fala pela boca dos pequeninos. Verificou-se ainda uma vez esta observação, espeitorando a vitela estas reflexões, tão sensatas quanto bovinas:

Gênero humano! Eu li há dias no Jornal do Comércio um artigo em que se fala dos interesses do produtor, do consumidor e do intermediário; falta falar do interesse do boi, que deve pesar alguma coisa na balança da República. O interesse do produtor é vendê-lo, o do consumidor é comprá-lo, o do intermediário é impingi-lo; o do boi é justamente contrário a todos três. Ao boi importa pouco que o matem em nome de um princípio ou de outro, da livre concorrência ou do monopólio. Uma vez que o matem, ele vê nisso, não um princípio, mas um fim, e um fim de que não há meio de escapar. Gênero humano! não zombeis esta pobre espécie.

Quê! Virgílio serve-se-nos para suas comparações poéticas; os pintores não deixam de incluir-nos em seus emblemas da agricultura; e não obstante esse préstimo elevado e estético, vós trazei-nos ao matadouro, como se fôssemos simples recrutas! Que diríeis vós se, em uma república de touros, um deles se lembrasse de convidar os outros a comer os homens? Por Ceres! poupai-nos por algum tempo!

Trecho retirado do livro Crônicas Selecionadas (editora Martin Claret; segunda edição ano 2009)